terça-feira, 1 de novembro de 2011

O medo é contagioso

[ATENÇÃO, LEITOR(A), O PRESENTE TEXTO POSSUI SPOILERS DO FILME “CONTÁGIO”. SE VOCÊ AINDA NÃO VIU O FILME, E NÃO QUER SABER O QUE ACONTECE ANTES DE ASSISTIR, RECOMENDAMOS QUE NÃO LEIA ESTE TEXTO AGORA. SE VOCÊ NÃO SE IMPORTA COM SPOILERS OU JÁ ASSISTIU AO FILME , DESEJO A VOCÊ UMA BOA LEITURA!]



Uma nova doença surge e se espalha rapidamente pelo planeta, matando milhares de pessoas, desafiando o conhecimento dos cientistas e espalhando o medo e o caos no mundo. Uma história como essa não possui nada de original, e muitos filmes já abordaram a temática de uma epidemia que se espalha pelos quatro cantos da Terra. Contudo, esse é o argumento de Contágio (EUA, 2011), novo filme de Steven Soderbergh que está em cartaz nos cinemas do país. Se o argumento do filme não tem nada de criativo, o que faz de Contágio uma obra que vale a pena ser vista? De fato, o mérito de Soderbergh nesta película é sua capacidade de realizar um bom filme a partir de um tema que já foi tratado diversas vezes na tela do cinema.
A película nos apresenta uma variedade de personagens: pessoas “comuns”, cientistas, militares, funcionários públicos, editores de jornal, adolescentes, adultos, homens, mulheres, asiáticos, brancos e negros. Contágio nos mostra, assim, as várias “histórias” dentro da “história” da epidemia. Vemos na tela como as pessoas adquirem a doença, como morrem, como lidam com o caos que se instala, como tentam encontrar a cura. Aqui Soderbergh se aproveita da qualidade do seu elenco, que conta com as presenças marcantes de Matt Damon, Kate Winslet, Laurence Fishburne, Marion Cotillard e Jude Law.
A partir de uma perspectiva plural, o filme faz uma interessante reflexão a respeito do código moral da sociedade. Quando o caos se instala, pessoas são forçadas a ficar em quarentena, o estoque de alimentos se esgota e o número de mortos sobe rapidamente a cada dia que passa, a maioria das pessoas deixa o código moral de lado: muitos cometem sequestro, matam, roubam, agridem etc. Mais contagioso do que a doença é o medo que se alastra, e nenhum dos personagens pode ser julgado, uma vez que a situação ali vivida é extrema, onde o “quadrado moral” se deforma facilmente.
Dentro deste contexto, é bastante ambíguo o caráter do personagem Alan Krumwiede (interpretado por Jude Law). Ao fazer o papel de um blogueiro que denuncia os interesses econômicos da indústria farmacêutica no processo de produção de uma vacina contra o vírus, Law faz o uso de todo um conjunto de gestos e expressões faciais que tornam difícil a avaliação da personalidade do seu personagem. É  Krumwiede um homem realmente comprometido com a verdade e interessado em “abrir os olhos” das pessoas, ou é ele um sujeito que também possui seus interesses econômicos e sente prazer em anunciar o fim do mundo, disseminando a insegurança? De qualquer modo, as falas de Krumwiede nos instigam a refletir sobre como os governos controlam as informações que são divulgadas, quando de situações extremas e desastrosas. No caso de uma pandemia, nem os cientistas podem ser vistos como pessoas confiáveis, estão sempre ocupados em impedir que determinadas informações vazem para a imprensa.
Um personagem interessante do filme é o Dr. Ellis Cheever (interpretado por Laurence Fishburne). Coordenando os trabalhos de combate à doença, Cheever se aproveita da sua posição, ao obter informações privilegiadas, para manter a esposa em um lugar seguro. O medo de perder a mulher é maior que o compromisso com toda a população. Todavia, ao longo de Contágio, Cheever vai se “redimir” quando, por baixo dos panos, dá uma dose da vacina para o filho do faxineiro de seu local de trabalho. Mesmo essa atitude de Cheever pode ser discutível, uma vez que fere o “protocolo de segurança”. Mas aqui Soderbergh nos instiga mais uma vez: qual a validade de tal protocolo? Como um personagem do filme diz: a questão não é apenas se haverá vacina para todos, mas quem seria vacinado primeiro. Afinal de contas, um homem como o presidente dos EUA, por exemplo, está em um “lugar secreto”, seguro, enquanto a maioria da população é obrigada a viver na insegurança do caos.
Mesmo com o medo da doença, alguns personagens conseguem ser manter “íntegros”, como a  Dra. Leonora Orantes (Marion Cotillard), uma pesquisadora que procura descobrir a origem da epidemia, e Thomas Emhoff (Matt Damon), um pai de família que, após perder a esposa e o enteado para o vírus, se vê na necessidade proteger a filha de qualquer ameaça. Thomas é imune ao vírus e pode transitar por diversos espaços, observando a pluralidade dos acontecimentos que se desenvolvem. Pode-se dizer que o personagem de Damon personifica a própria câmera de Soderbergh, uma vez que, sendo permitido a ele o acesso a vários espaços, ele observa a tudo e a todos, tal como a lente do cineasta.
Elemento interessante da película é o uso de letreiros para identificar a cidade onde determinada ação acontece, abaixo do nome de cada cidade podemos ler também o número de habitantes do lugar. Trata-se de um recurso que serve para mostrar não só o tamanho das grandes cidades, mas o tamanho do perigo da pandemia. É como se o diretor nos dissesse: “Está vendo estes milhões de pessoas? Todas elas correm perigo”. Em um mundo de cidades gigantescas, a pandemia de uma doença extremamente contagiosa faz com que todos nós sejamos doentes em potencial. O risco pode estar escondido em cada toque, em cada beijo, em cada aperto de mão, em cada tosse, em cada objeto que foi tocado por uma pessoa infectada. A câmera de Soderbergh se aproxima constantemente dos corpos dos personagens, mostrando-nos onde eles tocam, em quem eles tocam, o vírus pode estar em qualquer uma das mãos que vemos na tela. O medo provocado pela doença faz com que as pessoas se afastem, se toquem cada vez menos, o “outro” representa quase sempre uma ameaça. A filha de Thomas não pode sequer tocar o seu “namoradinho”.
Também merece destaque a montagem do filme. Contágio inicia-se no “2° Dia”, como vemos em um letreiro ao início da narrativa, e vai acompanhando o processo de evolução da pandemia ao longo do “3° Dia”, “4° Dia”, “5° Dia”... “131° Dia”. O uso de letreiros que informam quanto tempo já se passou desde a origem da pandemia faz do filme uma espécie de diário de todo o processo. O filme documenta, quase que jornalisticamente, os traços do cotidiano das pessoas e o esforço dos cientistas para solucionar o problema. Mas por que a obra não começa no “1° Dia”, mas no “2° Dia”? Trata-se de um segredo que Soderbergh só revela ao fim da película. Quando o namoradinho da filha de Thomas é vacinado, os dois finalmente podem se tocar. Ela coloca a canção “All I want is you”, do U2, para tocar no som da sala, e começa a dançar com o rapaz ao som da banda irlandesa. Se o filme terminasse aqui, seria praticamente um “final feliz”, uma vez que a tensão sentida ao longo da obra pelo espectador é substituída, nesta cena, por uma sensação de alívio. Contudo, depois deste momento dos dois jovens dançando, Soderbergh nos apresenta, finalmente, o que aconteceu no “1° Dia”...
Um morcego que comia uma banana deixa um pedaço dela cair em um local onde se cria porcos. O espectador do filme já está informado que o vírus da doença foi formado por meio de uma mistura de DNA de morcego com DNA de porco. Um dos porcos come o pedaço de banana que caiu no chão. Este mesmo porco é abatido e é enviado para uma cozinha, onde um cozinheiro o prepara. Sem lavar devidamente as mãos, o cozinheiro segura as mãos de Beth Emhoff, esposa de Thomas, para tirar uma foto, já que Beth estava ali, em Hong Kong, viajando a trabalho. Foi onde tudo começou. O alívio sentido pelo espectador durante a cena dos dois adolescentes dançando ao som do U2 é substituído pelo choque e pela tensão da revelação. “All I want is you” é substituída por uma trilha sonora tensa. A montagem do filme colocou o “1° Dia” no final para que o espectador sinta um pouco do medo e da insegurança sentida pelos personagens ao longo da obra. Alguns críticos afirmaram que esse flashback ao fim de Contágio é desnecessário, mas não vemos dessa forma. Acreditamos que Soderbergh faz o uso de tal flashback para mostrar que um simples fato pode ter consequências desastrosas.  
Contágio é sim um filme bem realizado. A qualidade do elenco, o uso de letreiros, a montagem, a trilha sonora e o enquadramento da câmera fazem com que a pouca criatividade do roteiro quase não seja sentida pelo espectador. O filme discute temas importantes: a questão moral, os interesses econômicos da indústria farmacêutica, a disputa pelo controle e pela divulgação da informação e o controle sobre o corpo. Se “faltou emoção” no filme por conta da grande quantidade de personagens, o que dificulta que o espectador se identifique com todos eles, não vemos essa “frieza” do filme como um defeito, como vem apontando parte da crítica especializada. A “frieza” do filme serve para nos manter afastados dos personagens e, desse modo, nos mantermos longe do risco de nos infectarmos com o vírus. Quando o assunto é uma pandemia, não há espaço para o toque, para a aproximação. O desejo de sobrevivência faz com que nos isolemos uns dos outros, o individualismo é elevado ao extremo, em um comportamento de difícil julgamento moral. Se a câmera de Soderbergh é “fria”, ela não o é por acaso, mas sim para cumprir uma função na narrativa. 
O espectador se encontra, desse modo, em um lugar “seguro” para assistir ao filme, sem o risco de se deixar contagiar pela doença, ainda que as qualidades do bom cinema de Soderbergh o “infectem ” com a magia da sétima arte.

Um comentário:

  1. Mesmo não assistindo o filme achei ótima essa análise, você conseguiu "captar os elementos subjacentes de modo idiossincrático", diria um especialista, rs.

    Acho que esse filme é um tapa na cara da indústria farmacêutica "americana" do pós-gripe "suína". Quem duvida?

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