sexta-feira, 21 de outubro de 2011

As coisas que compramos

Eu desejo que você ganhe dinheiro / Pois é preciso viver também / E que você diga a ele, pelo menos uma vez, / Quem é mesmo o dono de quem.
(Frejat)

Uma vez eu li em um livrinho de piadas, desses que a gente compra em uma banca de jornal qualquer, uma interessante definição de “status” que dizia: “status é comprar algo que você não quer, com um dinheiro que você não tem, no intuito de parecer, para pessoas que você não gosta, uma pessoa que você não é”. Em tempos de consumismo elevado à máxima potência, muitas vezes compramos coisas que não precisamos, mas que “queremos” possuir, já que a posse de determinados objetos nos dá algum “status”, ainda que parcelado em setenta e duas prestações.
O recentemente falecido Steve Jobs disse certa vez algo do tipo “As pessoas não sabem o que querem, até que você diga a elas”, e tenho que concordar com ele. Nós, seres humanos, apesar de todo o nosso discurso de racionalidade, não passamos de criaturas bobas. Não sabemos nem a hora em que estamos com fome, muito menos o que queremos da vida. No que diz respeito aos bens materiais, nossos desejos são comandados pelas propagandas de TV, pelos anúncios nos outdoors e pela transparência do vidro das vitrines. É verdade que estou generalizando aqui, mesmo sabendo que ainda há aqueles que ainda não se renderam ao exagerado consumismo de nossa sociedade.
De qualquer forma, o que quero deixar claro ao leitor é que a maioria das pessoas está preocupada em comprar, comprar e comprar, não percebendo que, por trás da falácia da liberdade supostamente oferecida pela sociedade “democrática” ocidental, há todo um jogo de relações de poder onde a maioria de nós, infelizmente, é tratada como um bando de marionetes a ser manipulado. O mercado nos diz que somos livres para escolher o que comprar, aonde viajar, a qual canal assistir, em quem votar etc., mas não nos conta como são definidas as opções que temos diante de nós. Enquanto uma minoria decide os rumos do planeta, a grande maioria segue a vida preocupando-se em trocar de celular a cada trimestre, em trocar de carro a cada ano que passa, em comprar as roupas mais caras e por aí vai...
Estou generalizando mais uma vez? Sim, e que meus colegas historiadores não fiquem chateados comigo por conta disso. Se estou generalizando, não é por ingenuidade e nem por desconhecimento a respeito das recentes mobilizações populares ao redor do mundo, nestes tempos de crise econômica. Sei muito bem que nem todos são consumistas, sei que há aqueles que usam da análise crítica no seu cotidiano e protestam quanto ao status quo da sociedade. Contudo, o alvo de minha crítica aqui é o consumismo, e minhas generalizações servem apenas para tentar explicitar ao leitor que o consumismo faz parte de uma trama mais ampla que envolve o controle político da maioria da população.
Dito isso, passemos agora às coisas que compramos. Preciso dizer que não tenho nada contra os objetos que possuímos ou que “queremos” possuir. O celular é uma invenção maravilhosa e muito útil, o carro é uma interessante ferramenta para nos deslocarmos no espaço, o computador nos ajuda no trabalho e no entretenimento, um tênis confortável conserva a saúde dos nossos pés e até mesmo da nossa coluna, uma roupa bacana nos permite um maior conforto no dia a dia. Qual o problema, então, em “consumir”, “comprar” e “possuir” esses objetos? O que há de errado em ter um sonho de consumo e mobilizar todas as forças para alcançá-lo?
Na minha avaliação, a armadilha do consumismo está na inversão de papéis entre os seres humanos e as coisas. Originalmente, as coisas foram e são criadas para servirem aos homens, mas na atualidade o que se observa é o contrário: nós estamos nos tornando escravos dos nossos bens materiais. Trata-se de um processo no qual as coisas são humanizadas e os homens são coisificados. Há alguns dias atrás, fiquei sabendo de um interessante caso: um jovem trabalhador comprou um carro e, por ter o orçamento apertado, agora vive fazendo “bicos” para conseguir manter a manutenção do automóvel. O carro não serve ao rapaz, mas é o rapaz que serve ao carro. Para além desse caso, ainda há os incontáveis casos de pais de família que deixam de comprar o leite das crianças a fim de garantir a gasolina do “possante”.
Se o moderno aparelho celular cai e se quebra, intermináveis lágrimas saem dos olhos. Oh não, ainda faltam onze prestações..., pensa o infeliz e endividado dono. Se a criança estraga a maravilhosa TV de plasma da família, o pai quase amputa as mãos do filho ou da filha. A “mercadoria” é o centro de tudo, o ser humano não é mais tão importante assim, as relações humanas estão reificadas, Marx foi perspicaz em sua análise da sociedade capitalista...
O que fazer dentro deste cenário? Precisamos viver, e de preferência com uma boa qualidade de vida. As invenções do mundo moderno são úteis e as pessoas devem ter o direito de possuí-las. Todavia, é preciso estar atento aos mecanismos de controle e dominação que estão escondidos por trás da farra do consumismo. Temos que tomar consciência de que as coisas que compramos são literalmente “coisas”, meros objetos que foram feitos para serem usados por nós, e não o contrário. É urgente lembrar que o que é realmente importante são as pessoas, e não as coisas.
Deixemos o exagero do consumismo de lado. Lutemos contra a reificação das relações humanas e instauremos, no seu lugar, a solidariedade e a cooperação entre os homens. Obstáculos nesta empreitada? Muitos, ainda mais quando estamos em um país onde a educação pouco tem contribuído para a emancipação intelectual dos nossos jovens, no sentido da conscientização quanto aos mecanismos de dominação e exploração da maioria pela minoria. Porém, esse é um desafio a ser enfrentado e, se quisermos um mundo melhor, não devemos fugir dele.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Crescer sem pai

Eu era ainda muito novo quando meu pai morreu. Ele se foi no dia 9 de agosto de 1990, alguns dias antes de eu completar dois anos de idade. Muitas pessoas me perguntam sobre como é não ter conhecido meu pai. Eu não me importo quando os outros me indagam sobre o assunto, mesmo porque de vez em quando eu também reflito sobre isso. Quando converso com alguém sobre esse tema geralmente ouço coisas do tipo “Ah, mas foi ‘melhor’ seu pai ter morrido quando você era bem pequeno, assim você não sofreu quando ele faleceu. E se tiver sofrido, você também nem se lembra, não é mesmo?”.
Devo admitir que há um pouco de verdade em falas como essa, e confesso que, ao ver o sofrimento de amigos meus quando perderam os seus respectivos pais, muitas vezes eu me senti um “privilegiado” por ter sido dispensado da tristeza de ver e de lembrar da morte do meu pai. Mas o fato de eu não ter passado por esse sofrimento não significa que eu nunca sofri com a perda precoce do meu genitor. Desde cedo eu tive que aprender o significado da morte, fui apresentado ao fato de que a vida humana é frágil, aprendi que a qualquer momento podemos ser arrebatados deste mundo, sem chance de nos despedirmos daqueles que amamos. Não tive o meu pai comigo para me ensinar a jogar bola, a andar de bicicleta, a subir em árvores, a dirigir, a conquistar as meninas etc. Eu tive que aprender sozinho a fazer um monte de coisas, outras eu confesso que nem aprendi ainda...
A pior parte de ter crescido sem pai foi durante a época da escola, quando eu ainda era um garotinho. Todos os anos quando se aproximava o Dia dos Pais, as professoras pediam aos alunos que escrevessem cartinhas cheias de “Eu te amo papai”, repletas de desenhos coloridos. Para não me sentir excluído, eu sempre acabava fazendo o que me pediam. Algumas vezes, porém, eu dava um “jeitinho” e, ao invés de escrever para o meu pai, escrevia para a minha mãe, que sempre foi pai e mãe para mim, ou para o meu avô materno, a maior e melhor referência como homem que Deus me deu.
Alguns rapazes que crescem sem pai perdem-se e ficam revoltados com a vida. Quanto a mim, acho que me adaptei bem ao longo dos anos, aprendi a lidar com o fato. Nunca usei a minha condição de órfão para bancar o coitadinho, por mais que muitas pessoas demonstrassem pena de mim quando descobriam que eu não havia conhecido meu pai. Desde cedo preferi encarar a minha orfandade como um recado de Deus: “Olha aqui, Rodrigo, você não tem pai, por isso você vai ter que se virar. Não fique esperando as coisas caírem do céu, ninguém o dará nada. Se quiser algo, não fique reclamando da vida e mendigando aos outros, procure estudar, trabalhar, ser honesto e correr atrás, até conseguir”.
Falando assim pode até parecer que não sinto falta de ter um pai, o que não é verdade, pois às vezes eu sinto sim. Não posso negar que cresci com esse vazio dentro de mim. O mais interessante disso tudo é que, vez ou outra, eu sonho com o meu pai. É um pouco estranho quando isso acontece porque, nesses sonhos, ele e eu nunca conversamos muito e raramente nos abraçamos. Quando sonho com ele, estamos quase sempre em um lugar tranquilo, onde ele me olha com um olhar carinhoso, mas me diz poucas palavras. Outras vezes ainda ele fica completamente calado, acho que ele não precisa me dizer nada para me dar conselhos, sua imagem já me diz tudo: se me olha carinhosamente e me dá um leve sorriso, sei que está orgulhoso de mim por algum motivo, se me olha de forma mais dura, sei que está, possivelmente, desapontado comigo.
Eu não fico triste com o meu pai por ele conversar pouco comigo e por não me abraçar muito nos meus sonhos. Acredito que meus sonhos são assim porque eu não o conheci e, portanto, não me lembro dele. Não conheço muitos detalhes a seu respeito: não sei como era sua voz, o seu jeito de andar, a forma de sorrir, o calor dos seus abraços, como era o seu perfume etc. A imagem que tenho dele é a mesma que está nas fotografias antigas, nos meus sonhos a aparência dele nunca muda, meu pai nunca envelhece. É sempre uma imagem que está ali para eu apenas olhar e tentar compreender o que ele me diz com o seu silêncio...
Penso muito nos meus amigos que, ao longo de suas vidas, perderam seus pais. Eles choraram e sofreram, e acredito que muitos ainda choram e sofrem às vezes. Não passei pela mesma dor deles, e isso me conforta um pouco. Mas confesso que sinto uma pontinha de inveja deles porque, apesar da dor, eles possuem algo que eu nunca vou poder ter do meu pai: a lembrança. Eles conseguem se lembrar dos rostos dos seus pais, dos bons momentos que tiveram, dos abraços, dos sorrisos, dos perfumes e até mesmo das crises e das brigas. Meus amigos têm garantido o direito à lembrança e, por isso, podem sentir saudade dos seus pais. “Saudade”, sentimento ambíguo esse que, por um lado, nos dá um aperto e uma dor no coração por causa da ausência de alguém que já se foi, mas que, por outro lado, nos alivia a alma por meio da lembrança, a lembrança que nos permite sentir que aqueles que partiram ainda estão conosco.
Crescer sem pai desde os anos iniciais da vida significa sempre sentir falta de um pai, mas ser impossibilitado de sentir saudade do próprio pai, exatamente pela inexistência da lembrança. Contudo, eu não fico me queixando pelo fato de meu pai ter morrido, prefiro sim tocar a vida em frente, acreditando que Deus sempre faz a coisa certa. A única coisa da qual eu me queixo às vezes é pelo fato de eu não ter tido tempo de conhecer meu pai, porque dessa forma eu pelo menos poderia sentir sua presença de forma mais intensa, por meio da lembrança. Em suma, é isto: eu só queria ter conhecido meu pai para poder sentir saudade.