quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Uma aula de Woody Allen sobre cinema

Woody Allen é um grande diretor, disso não há dúvidas. Seus filmes são capazes de nos provocar o riso e a reflexão. Mas o diretor de cinema também é um professor de cinema, capaz de nos dar lições interessantes sobre a sétima arte. Interessante exemplo de como Allen é um professor de cinema está no filme A Rosa Púrpura do Cairo (1984), indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original.

Logo no início da película podemos ver o cartaz de um filme que será exibido em um cinema. O cartaz é no estilo dos cartazes dos clássicos dos anos 1930. Cecília (interpretada brilhantemente por Mia Farrow) está em frente ao cinema e observa o cartaz da nova atração. Podemos ver, logo nessa cena inicial do filme, o olhar da personagem principal revelar todo o seu amor pelo mundo do cinema, podemos sentir o quanto Cecília está absorvida pela imagem do cartaz do filme, percebemos que o cinema é algo muito importante para ela. Em seguida, um funcionário do cinema fala à Cecília que ela certamente gostará do novo filme, uma vez que se trata de uma obra mais romântica que o filme anterior. É como se Woody Allen nos fizesse pensar por um momento sobre a relação das mulheres com os filmes românticos.

Mas qual a razão de tanto apego ao mundo do cinema? Por que Cecília ama tanto o cinema? Na sequência do filme, o espectador é informado sobre como é a vida de Cecília. A protagonista da obra de Allen vive em um contexto histórico complicado: a Grande Depressão americana. O desemprego afeta a muitos e as dificuldades são grandes. Cecília trabalha como garçonete em uma lanchonete, o trabalho é pesado, ela sempre se atrapalha com os pedidos dos clientes, quebra os pratos constantemente e seu patrão é exigente. A irmã de Cecília trabalha na mesma lanchonete e as duas sempre conversam sobre os filmes e os astros do cinema. Nas conversas com a irmã, Cecília fala da vida pessoal dos atores como se estivesse falando da vida de algum amigo ou vizinho. Nesse momento do filme, Allen nos ensina sobre a relação de falsa intimidade entre o astro do cinema e seus milhares de fãs. Aqui Allen também nos ensina sobre o Star System do cinema americano, ou seja, sobre o fato de os filmes se valerem da presença dos “astros do cinema” para atrair as pessoas às salas de exibição.

Voltando ao filme, temos que não apenas a vida profissional de Cecília é sofrível, mas também a sua vida pessoal. A personagem de Mia Farrow é casada com Monk (Danny Aiello), um homem que está desempregado e passa os dias nas ruas, bebendo e jogando dados e cartas com os amigos. Se Cecília é uma personagem construída de modo a permitir que o espectador se identifique com ela, Monk já é um personagem construído de modo que o espectador tenha repulsa dele. Monk é um homem violento, bate em Cecília e também a trai com outras mulheres. Assistindo a essas cenas, o espectador de A Rosa Púrpura do Cairo observa que a vida de Cecília é marcada pelas dificuldades e pelo sofrimento. Nesse sentido, temos que a protagonista é apaixonada pelo universo do cinema por ver nesse mundo de fantasia uma válvula de escape para a sua dura realidade. O mundo do cinema é o mundo dos sonhos, o lugar onde tudo pode acontecer, onde todos os obstáculos podem ser superados e onde tudo pode ser alcançado. É como se aqui Allen nos falasse do papel que o cinema muitas vezes desempenhou e ainda desempenha: o papel de auxiliar as pessoas a fugirem, pelo menos durante o tempo de exibição de um filme, de suas realidades cruéis.

Para tentar escapar de sua realidade, Cecília refugia-se cada vez mais na sala de cinema. Após ser demitida, a protagonista vai assistir a um filme chamado “A Rosa Púrpura do Cairo” (daí o nome do filme de Allen) e se apega muito à obra, indo assisti-la constantemente. E é de tanto assistir ao filme que algo fantástico acontece...

Durante uma das exibições, um dos personagens do filme, um encantador arqueólogo chamado Tom Baxter (interpretado por Jeff Daniels), decide sair da tela do cinema e ir falar com Cecília. Baxter ficou admirado com o fato de Cecília assistir ao filme repetidas vezes. Quando tal inusitada situação acontece, a sala do cinema vira um caos, os espectadores ficam espantados com o acontecimento e uma mulher chega a desmaiar. Mas a narrativa do filme que estava sendo exibido também vira um caos, os outros personagens ficam presos na tela, não podendo continuar a história sem a presença de Tom Baxter. Os espectadores na sala de exibição e os personagens na tela do cinema não sabem o que fazer, a narrativa do filme pára. O gerente do cinema chega e pede aos personagens na tela que fiquem calmos. O tom cômico dessa cena criada por Allen é bastante sutil, notadamente no momento em que os personagens na tela pedem ao gerente que ele não desligue o projetor porque tudo fica escuro para eles quando isso acontece.

Com a saída de Baxter do filme para o mundo real, o filme que estava sendo exibido é paralisado como se fosse uma peça de teatro; os outros atores em cena ficam presos na tela sem saber o que fazer e ficam discutindo, tal como se fossem atores de teatro; os espectadores na sala de exibição conversam com os personagens na tela, como se eles fossem atores de uma peça teatral. Aqui Allen nos lembra dos primeiros tempos da história do cinema, quando a nova arte possuía uma forte ligação com o teatro, quando muitos atores de teatro participavam dos primeiros filmes de ficção. O espectador do filme de Allen sabe que a situação de um personagem sair da tela não é possível, uma vez que um filme não é uma peça de teatro, na qual seria possível um dos atores descer do palco e ir até a plateia. Allen nos informa, através do absurdo (para o nosso plano real) da cena escrita por ele que o cinema não é igual ao teatro, o cinema é uma outra coisa. De fato, se lembrarmos dos primeiros anos da história do cinema, veremos que a nova arte provocou toda uma série de debates a respeito do seu valor de arte. O cinema, devido ao seu grande “efeito de realidade”, consolidou-se, ao longo dos anos, como uma experiência estética que ultrapassa o teatro, a pintura, a fotografia, a literatura e a música, muitas vezes valendo-se da mistura dessas várias artes para constituir-se como uma espécie de universo paralelo, um outro mundo que é visível a nós através dessas verdadeiras janelas que são as telas de cinema. O cinema é uma arte cujo “efeito de realidade” é elevado à máxima potência e, quando Allen faz Baxter sair da tela e fugir do cinema com Cecília, o que o diretor quer nos ensinar é sobre a relação entre realidade e ficção, relação essa que no mundo do cinema não é necessariamente de oposição, mas muitas vezes de uma complexa mistura entre o real e o ficcional.

Voltando à história narrada pelo filme de Allen, Baxter e Cecília saem pela cidade e ele está ansioso por conhecer o mundo real. Enquanto isso, os outros personagens do filme de Baxter seguem presos na tela, impossibilitados de continuarem com a sua encenação. A imprensa e as pessoas da cidade ficam curiosas com o que aconteceu no cinema e muitas entram na sala de exibição para ver e conversar com os personagens na tela. O gerente do cinema decide chamar o produtor do filme, Raoul Hirsch, para tentar solucionar a situação. Hirsch decide, por sua vez, chamar o ator Gil Shepherd, ator que interpreta Baxter no filme. Os momentos em que vemos o produtor e os outros “homens do dinheiro”, homens esses que ficam por trás das câmeras do cinema, discutindo sobre a questão do prejuízo financeiro que o caso provocará são momentos do filme em que Allen nos ensina sobre os bastidores do cinema, sobre a condição de indústria que a sétima arte ganhou ao longo de sua história, sobre a inserção do cinema no sistema capitalista, sobre os interesses financeiros por trás de um produto cultural que faz milhões de pessoas ao redor do mundo se emocionarem e sonharem.

Do lado de cá da tela, Baxter tem algumas dificuldades em lidar com o mundo real, uma vez que as coisas não acontecem automaticamente como nos filmes (como na cena em que ele pensa que basta entrar em um carro para que ele funcione sozinho), mas ele acaba se envolvendo amorosamente com Cecília, revelando-se como um homem completamente diferente de Monk, já que o arqueólogo é educado, protetor e romântico. Enquanto isso, Raoul Hirsch e Gil Shepherd vão ao cinema de onde Baxter fugiu, a intenção dos dois é dar uma solução à crise e fazer com que o personagem “fujão” volte para o filme. Gil Shepherd tenta convencer Tom Baxter a voltar para a tela do cinema, mas o personagem se recusa e diz que quer conhecer o mundo real e viver nele. Não conseguindo convencer sua própria criação, Shepherd se aproxima de Cecília até que ela também se envolva com ele.

Na parte final do filme, Baxter volta ao cinema ao lado de Cecília e a faz entrar, junto com ele, dentro do filme do qual Baxter havia saído. Trata-se de uma sequência maravilhosa em que realidade e ficção se confundem ainda mais. Baxter leva Cecília pela noite, passeando com ela pelos ambientes do filme. Com Cecília dentro do filme o enredo da história muda e, aqui, Allen nos mostra que a inserção de um personagem a mais pode mudar completamente uma narrativa fílmica.

Shepherd chega então até a sala de cinema e espanta-se ao ver Baxter e Cecília na tela. O arqueólogo e a moça saem da tela para conversar com Shepherd e o ator se diz apaixonado por Cecília. A protagonista se vê na necessidade de escolher entre um dos seus dois novos amores. Ao ouvir a proposta do ator que convida-a a fugir com ele para Hollywood, Cecília opta por Shepherd e Baxter volta, completamente triste, para a tela do cinema. A escolha de Cecília mostra uma necessidade da personagem de viver emoções que sejam efetivamente reais. O personagem fictício a encanta, mas no fundo o que ela quer é que o conto de fadas do cinema torne-se realidade, o que só seria possível se ela escolhesse Shepherd.

Mas a realidade é cruel e o mundo é cheio de pessoas que não são confiáveis. Quando Cecília procura Shepherd para ir embora com ele para Hollywood, descobre que o ator já foi embora e a deixou. O caminho encontrado por Cecília para esquecer a crueldade do mundo real é o mesmo que ela se valia no início do filme: o universo do cinema. Na última cena de A Rosa Púrpura do Cairo vemos Cecília na sala de cinema assistindo a um filme estrelado por Fred Astaire. Cecília assiste ao filme com os olhos lacrimejantes e um discreto sorriso, profundamente absorvida pela magia do cinema.

A Rosa Púrpura do Cairo é um filme belíssimo. A trilha sonora é de uma leveza ímpar e, muitas vezes, combina-se maravilhosamente bem com as cenas mais inusitadas que vemos na tela. O elenco, os figurinos e o roteiro também são pontos altos da obra. Com esse filme, Woody Allen emociona o espectador, prende sua atenção, mas também o ensina. De fato, Allen reflete e faz o espectador refletir sobre o mundo do cinema, sobre sua magia, sobre sua capacidade de emocionar e de fazer sonhar. Podemos ver ao longo da película vários tópicos da História e da Teoria do Cinema: a função escapista muitas vezes assumida pelo cinema; a relação complexa entre realidade e ficção na sétima arte; a relação da mulher com os filmes românticos; o Star System; a falsa intimidade entre a estrela de cinema e seus fãs; a tradição oriunda do teatro que foi recebida e modificada pelo cinema; o caráter de indústria que a sétima arte ganhou ao longo do século XX; as múltiplas possibilidades de construção de uma narrativa fílmica; o "efeito de realidade" do cinema.

É por emocionar e ensinar o espectador que A Rosa Púrpura do Cairo configura-se como uma ótima dica de filme para quem quer se deixar levar pela magia do cinema e aprender um pouco mais sobre a sétima arte!