terça-feira, 1 de novembro de 2011

O medo é contagioso

[ATENÇÃO, LEITOR(A), O PRESENTE TEXTO POSSUI SPOILERS DO FILME “CONTÁGIO”. SE VOCÊ AINDA NÃO VIU O FILME, E NÃO QUER SABER O QUE ACONTECE ANTES DE ASSISTIR, RECOMENDAMOS QUE NÃO LEIA ESTE TEXTO AGORA. SE VOCÊ NÃO SE IMPORTA COM SPOILERS OU JÁ ASSISTIU AO FILME , DESEJO A VOCÊ UMA BOA LEITURA!]



Uma nova doença surge e se espalha rapidamente pelo planeta, matando milhares de pessoas, desafiando o conhecimento dos cientistas e espalhando o medo e o caos no mundo. Uma história como essa não possui nada de original, e muitos filmes já abordaram a temática de uma epidemia que se espalha pelos quatro cantos da Terra. Contudo, esse é o argumento de Contágio (EUA, 2011), novo filme de Steven Soderbergh que está em cartaz nos cinemas do país. Se o argumento do filme não tem nada de criativo, o que faz de Contágio uma obra que vale a pena ser vista? De fato, o mérito de Soderbergh nesta película é sua capacidade de realizar um bom filme a partir de um tema que já foi tratado diversas vezes na tela do cinema.
A película nos apresenta uma variedade de personagens: pessoas “comuns”, cientistas, militares, funcionários públicos, editores de jornal, adolescentes, adultos, homens, mulheres, asiáticos, brancos e negros. Contágio nos mostra, assim, as várias “histórias” dentro da “história” da epidemia. Vemos na tela como as pessoas adquirem a doença, como morrem, como lidam com o caos que se instala, como tentam encontrar a cura. Aqui Soderbergh se aproveita da qualidade do seu elenco, que conta com as presenças marcantes de Matt Damon, Kate Winslet, Laurence Fishburne, Marion Cotillard e Jude Law.
A partir de uma perspectiva plural, o filme faz uma interessante reflexão a respeito do código moral da sociedade. Quando o caos se instala, pessoas são forçadas a ficar em quarentena, o estoque de alimentos se esgota e o número de mortos sobe rapidamente a cada dia que passa, a maioria das pessoas deixa o código moral de lado: muitos cometem sequestro, matam, roubam, agridem etc. Mais contagioso do que a doença é o medo que se alastra, e nenhum dos personagens pode ser julgado, uma vez que a situação ali vivida é extrema, onde o “quadrado moral” se deforma facilmente.
Dentro deste contexto, é bastante ambíguo o caráter do personagem Alan Krumwiede (interpretado por Jude Law). Ao fazer o papel de um blogueiro que denuncia os interesses econômicos da indústria farmacêutica no processo de produção de uma vacina contra o vírus, Law faz o uso de todo um conjunto de gestos e expressões faciais que tornam difícil a avaliação da personalidade do seu personagem. É  Krumwiede um homem realmente comprometido com a verdade e interessado em “abrir os olhos” das pessoas, ou é ele um sujeito que também possui seus interesses econômicos e sente prazer em anunciar o fim do mundo, disseminando a insegurança? De qualquer modo, as falas de Krumwiede nos instigam a refletir sobre como os governos controlam as informações que são divulgadas, quando de situações extremas e desastrosas. No caso de uma pandemia, nem os cientistas podem ser vistos como pessoas confiáveis, estão sempre ocupados em impedir que determinadas informações vazem para a imprensa.
Um personagem interessante do filme é o Dr. Ellis Cheever (interpretado por Laurence Fishburne). Coordenando os trabalhos de combate à doença, Cheever se aproveita da sua posição, ao obter informações privilegiadas, para manter a esposa em um lugar seguro. O medo de perder a mulher é maior que o compromisso com toda a população. Todavia, ao longo de Contágio, Cheever vai se “redimir” quando, por baixo dos panos, dá uma dose da vacina para o filho do faxineiro de seu local de trabalho. Mesmo essa atitude de Cheever pode ser discutível, uma vez que fere o “protocolo de segurança”. Mas aqui Soderbergh nos instiga mais uma vez: qual a validade de tal protocolo? Como um personagem do filme diz: a questão não é apenas se haverá vacina para todos, mas quem seria vacinado primeiro. Afinal de contas, um homem como o presidente dos EUA, por exemplo, está em um “lugar secreto”, seguro, enquanto a maioria da população é obrigada a viver na insegurança do caos.
Mesmo com o medo da doença, alguns personagens conseguem ser manter “íntegros”, como a  Dra. Leonora Orantes (Marion Cotillard), uma pesquisadora que procura descobrir a origem da epidemia, e Thomas Emhoff (Matt Damon), um pai de família que, após perder a esposa e o enteado para o vírus, se vê na necessidade proteger a filha de qualquer ameaça. Thomas é imune ao vírus e pode transitar por diversos espaços, observando a pluralidade dos acontecimentos que se desenvolvem. Pode-se dizer que o personagem de Damon personifica a própria câmera de Soderbergh, uma vez que, sendo permitido a ele o acesso a vários espaços, ele observa a tudo e a todos, tal como a lente do cineasta.
Elemento interessante da película é o uso de letreiros para identificar a cidade onde determinada ação acontece, abaixo do nome de cada cidade podemos ler também o número de habitantes do lugar. Trata-se de um recurso que serve para mostrar não só o tamanho das grandes cidades, mas o tamanho do perigo da pandemia. É como se o diretor nos dissesse: “Está vendo estes milhões de pessoas? Todas elas correm perigo”. Em um mundo de cidades gigantescas, a pandemia de uma doença extremamente contagiosa faz com que todos nós sejamos doentes em potencial. O risco pode estar escondido em cada toque, em cada beijo, em cada aperto de mão, em cada tosse, em cada objeto que foi tocado por uma pessoa infectada. A câmera de Soderbergh se aproxima constantemente dos corpos dos personagens, mostrando-nos onde eles tocam, em quem eles tocam, o vírus pode estar em qualquer uma das mãos que vemos na tela. O medo provocado pela doença faz com que as pessoas se afastem, se toquem cada vez menos, o “outro” representa quase sempre uma ameaça. A filha de Thomas não pode sequer tocar o seu “namoradinho”.
Também merece destaque a montagem do filme. Contágio inicia-se no “2° Dia”, como vemos em um letreiro ao início da narrativa, e vai acompanhando o processo de evolução da pandemia ao longo do “3° Dia”, “4° Dia”, “5° Dia”... “131° Dia”. O uso de letreiros que informam quanto tempo já se passou desde a origem da pandemia faz do filme uma espécie de diário de todo o processo. O filme documenta, quase que jornalisticamente, os traços do cotidiano das pessoas e o esforço dos cientistas para solucionar o problema. Mas por que a obra não começa no “1° Dia”, mas no “2° Dia”? Trata-se de um segredo que Soderbergh só revela ao fim da película. Quando o namoradinho da filha de Thomas é vacinado, os dois finalmente podem se tocar. Ela coloca a canção “All I want is you”, do U2, para tocar no som da sala, e começa a dançar com o rapaz ao som da banda irlandesa. Se o filme terminasse aqui, seria praticamente um “final feliz”, uma vez que a tensão sentida ao longo da obra pelo espectador é substituída, nesta cena, por uma sensação de alívio. Contudo, depois deste momento dos dois jovens dançando, Soderbergh nos apresenta, finalmente, o que aconteceu no “1° Dia”...
Um morcego que comia uma banana deixa um pedaço dela cair em um local onde se cria porcos. O espectador do filme já está informado que o vírus da doença foi formado por meio de uma mistura de DNA de morcego com DNA de porco. Um dos porcos come o pedaço de banana que caiu no chão. Este mesmo porco é abatido e é enviado para uma cozinha, onde um cozinheiro o prepara. Sem lavar devidamente as mãos, o cozinheiro segura as mãos de Beth Emhoff, esposa de Thomas, para tirar uma foto, já que Beth estava ali, em Hong Kong, viajando a trabalho. Foi onde tudo começou. O alívio sentido pelo espectador durante a cena dos dois adolescentes dançando ao som do U2 é substituído pelo choque e pela tensão da revelação. “All I want is you” é substituída por uma trilha sonora tensa. A montagem do filme colocou o “1° Dia” no final para que o espectador sinta um pouco do medo e da insegurança sentida pelos personagens ao longo da obra. Alguns críticos afirmaram que esse flashback ao fim de Contágio é desnecessário, mas não vemos dessa forma. Acreditamos que Soderbergh faz o uso de tal flashback para mostrar que um simples fato pode ter consequências desastrosas.  
Contágio é sim um filme bem realizado. A qualidade do elenco, o uso de letreiros, a montagem, a trilha sonora e o enquadramento da câmera fazem com que a pouca criatividade do roteiro quase não seja sentida pelo espectador. O filme discute temas importantes: a questão moral, os interesses econômicos da indústria farmacêutica, a disputa pelo controle e pela divulgação da informação e o controle sobre o corpo. Se “faltou emoção” no filme por conta da grande quantidade de personagens, o que dificulta que o espectador se identifique com todos eles, não vemos essa “frieza” do filme como um defeito, como vem apontando parte da crítica especializada. A “frieza” do filme serve para nos manter afastados dos personagens e, desse modo, nos mantermos longe do risco de nos infectarmos com o vírus. Quando o assunto é uma pandemia, não há espaço para o toque, para a aproximação. O desejo de sobrevivência faz com que nos isolemos uns dos outros, o individualismo é elevado ao extremo, em um comportamento de difícil julgamento moral. Se a câmera de Soderbergh é “fria”, ela não o é por acaso, mas sim para cumprir uma função na narrativa. 
O espectador se encontra, desse modo, em um lugar “seguro” para assistir ao filme, sem o risco de se deixar contagiar pela doença, ainda que as qualidades do bom cinema de Soderbergh o “infectem ” com a magia da sétima arte.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

As coisas que compramos

Eu desejo que você ganhe dinheiro / Pois é preciso viver também / E que você diga a ele, pelo menos uma vez, / Quem é mesmo o dono de quem.
(Frejat)

Uma vez eu li em um livrinho de piadas, desses que a gente compra em uma banca de jornal qualquer, uma interessante definição de “status” que dizia: “status é comprar algo que você não quer, com um dinheiro que você não tem, no intuito de parecer, para pessoas que você não gosta, uma pessoa que você não é”. Em tempos de consumismo elevado à máxima potência, muitas vezes compramos coisas que não precisamos, mas que “queremos” possuir, já que a posse de determinados objetos nos dá algum “status”, ainda que parcelado em setenta e duas prestações.
O recentemente falecido Steve Jobs disse certa vez algo do tipo “As pessoas não sabem o que querem, até que você diga a elas”, e tenho que concordar com ele. Nós, seres humanos, apesar de todo o nosso discurso de racionalidade, não passamos de criaturas bobas. Não sabemos nem a hora em que estamos com fome, muito menos o que queremos da vida. No que diz respeito aos bens materiais, nossos desejos são comandados pelas propagandas de TV, pelos anúncios nos outdoors e pela transparência do vidro das vitrines. É verdade que estou generalizando aqui, mesmo sabendo que ainda há aqueles que ainda não se renderam ao exagerado consumismo de nossa sociedade.
De qualquer forma, o que quero deixar claro ao leitor é que a maioria das pessoas está preocupada em comprar, comprar e comprar, não percebendo que, por trás da falácia da liberdade supostamente oferecida pela sociedade “democrática” ocidental, há todo um jogo de relações de poder onde a maioria de nós, infelizmente, é tratada como um bando de marionetes a ser manipulado. O mercado nos diz que somos livres para escolher o que comprar, aonde viajar, a qual canal assistir, em quem votar etc., mas não nos conta como são definidas as opções que temos diante de nós. Enquanto uma minoria decide os rumos do planeta, a grande maioria segue a vida preocupando-se em trocar de celular a cada trimestre, em trocar de carro a cada ano que passa, em comprar as roupas mais caras e por aí vai...
Estou generalizando mais uma vez? Sim, e que meus colegas historiadores não fiquem chateados comigo por conta disso. Se estou generalizando, não é por ingenuidade e nem por desconhecimento a respeito das recentes mobilizações populares ao redor do mundo, nestes tempos de crise econômica. Sei muito bem que nem todos são consumistas, sei que há aqueles que usam da análise crítica no seu cotidiano e protestam quanto ao status quo da sociedade. Contudo, o alvo de minha crítica aqui é o consumismo, e minhas generalizações servem apenas para tentar explicitar ao leitor que o consumismo faz parte de uma trama mais ampla que envolve o controle político da maioria da população.
Dito isso, passemos agora às coisas que compramos. Preciso dizer que não tenho nada contra os objetos que possuímos ou que “queremos” possuir. O celular é uma invenção maravilhosa e muito útil, o carro é uma interessante ferramenta para nos deslocarmos no espaço, o computador nos ajuda no trabalho e no entretenimento, um tênis confortável conserva a saúde dos nossos pés e até mesmo da nossa coluna, uma roupa bacana nos permite um maior conforto no dia a dia. Qual o problema, então, em “consumir”, “comprar” e “possuir” esses objetos? O que há de errado em ter um sonho de consumo e mobilizar todas as forças para alcançá-lo?
Na minha avaliação, a armadilha do consumismo está na inversão de papéis entre os seres humanos e as coisas. Originalmente, as coisas foram e são criadas para servirem aos homens, mas na atualidade o que se observa é o contrário: nós estamos nos tornando escravos dos nossos bens materiais. Trata-se de um processo no qual as coisas são humanizadas e os homens são coisificados. Há alguns dias atrás, fiquei sabendo de um interessante caso: um jovem trabalhador comprou um carro e, por ter o orçamento apertado, agora vive fazendo “bicos” para conseguir manter a manutenção do automóvel. O carro não serve ao rapaz, mas é o rapaz que serve ao carro. Para além desse caso, ainda há os incontáveis casos de pais de família que deixam de comprar o leite das crianças a fim de garantir a gasolina do “possante”.
Se o moderno aparelho celular cai e se quebra, intermináveis lágrimas saem dos olhos. Oh não, ainda faltam onze prestações..., pensa o infeliz e endividado dono. Se a criança estraga a maravilhosa TV de plasma da família, o pai quase amputa as mãos do filho ou da filha. A “mercadoria” é o centro de tudo, o ser humano não é mais tão importante assim, as relações humanas estão reificadas, Marx foi perspicaz em sua análise da sociedade capitalista...
O que fazer dentro deste cenário? Precisamos viver, e de preferência com uma boa qualidade de vida. As invenções do mundo moderno são úteis e as pessoas devem ter o direito de possuí-las. Todavia, é preciso estar atento aos mecanismos de controle e dominação que estão escondidos por trás da farra do consumismo. Temos que tomar consciência de que as coisas que compramos são literalmente “coisas”, meros objetos que foram feitos para serem usados por nós, e não o contrário. É urgente lembrar que o que é realmente importante são as pessoas, e não as coisas.
Deixemos o exagero do consumismo de lado. Lutemos contra a reificação das relações humanas e instauremos, no seu lugar, a solidariedade e a cooperação entre os homens. Obstáculos nesta empreitada? Muitos, ainda mais quando estamos em um país onde a educação pouco tem contribuído para a emancipação intelectual dos nossos jovens, no sentido da conscientização quanto aos mecanismos de dominação e exploração da maioria pela minoria. Porém, esse é um desafio a ser enfrentado e, se quisermos um mundo melhor, não devemos fugir dele.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Crescer sem pai

Eu era ainda muito novo quando meu pai morreu. Ele se foi no dia 9 de agosto de 1990, alguns dias antes de eu completar dois anos de idade. Muitas pessoas me perguntam sobre como é não ter conhecido meu pai. Eu não me importo quando os outros me indagam sobre o assunto, mesmo porque de vez em quando eu também reflito sobre isso. Quando converso com alguém sobre esse tema geralmente ouço coisas do tipo “Ah, mas foi ‘melhor’ seu pai ter morrido quando você era bem pequeno, assim você não sofreu quando ele faleceu. E se tiver sofrido, você também nem se lembra, não é mesmo?”.
Devo admitir que há um pouco de verdade em falas como essa, e confesso que, ao ver o sofrimento de amigos meus quando perderam os seus respectivos pais, muitas vezes eu me senti um “privilegiado” por ter sido dispensado da tristeza de ver e de lembrar da morte do meu pai. Mas o fato de eu não ter passado por esse sofrimento não significa que eu nunca sofri com a perda precoce do meu genitor. Desde cedo eu tive que aprender o significado da morte, fui apresentado ao fato de que a vida humana é frágil, aprendi que a qualquer momento podemos ser arrebatados deste mundo, sem chance de nos despedirmos daqueles que amamos. Não tive o meu pai comigo para me ensinar a jogar bola, a andar de bicicleta, a subir em árvores, a dirigir, a conquistar as meninas etc. Eu tive que aprender sozinho a fazer um monte de coisas, outras eu confesso que nem aprendi ainda...
A pior parte de ter crescido sem pai foi durante a época da escola, quando eu ainda era um garotinho. Todos os anos quando se aproximava o Dia dos Pais, as professoras pediam aos alunos que escrevessem cartinhas cheias de “Eu te amo papai”, repletas de desenhos coloridos. Para não me sentir excluído, eu sempre acabava fazendo o que me pediam. Algumas vezes, porém, eu dava um “jeitinho” e, ao invés de escrever para o meu pai, escrevia para a minha mãe, que sempre foi pai e mãe para mim, ou para o meu avô materno, a maior e melhor referência como homem que Deus me deu.
Alguns rapazes que crescem sem pai perdem-se e ficam revoltados com a vida. Quanto a mim, acho que me adaptei bem ao longo dos anos, aprendi a lidar com o fato. Nunca usei a minha condição de órfão para bancar o coitadinho, por mais que muitas pessoas demonstrassem pena de mim quando descobriam que eu não havia conhecido meu pai. Desde cedo preferi encarar a minha orfandade como um recado de Deus: “Olha aqui, Rodrigo, você não tem pai, por isso você vai ter que se virar. Não fique esperando as coisas caírem do céu, ninguém o dará nada. Se quiser algo, não fique reclamando da vida e mendigando aos outros, procure estudar, trabalhar, ser honesto e correr atrás, até conseguir”.
Falando assim pode até parecer que não sinto falta de ter um pai, o que não é verdade, pois às vezes eu sinto sim. Não posso negar que cresci com esse vazio dentro de mim. O mais interessante disso tudo é que, vez ou outra, eu sonho com o meu pai. É um pouco estranho quando isso acontece porque, nesses sonhos, ele e eu nunca conversamos muito e raramente nos abraçamos. Quando sonho com ele, estamos quase sempre em um lugar tranquilo, onde ele me olha com um olhar carinhoso, mas me diz poucas palavras. Outras vezes ainda ele fica completamente calado, acho que ele não precisa me dizer nada para me dar conselhos, sua imagem já me diz tudo: se me olha carinhosamente e me dá um leve sorriso, sei que está orgulhoso de mim por algum motivo, se me olha de forma mais dura, sei que está, possivelmente, desapontado comigo.
Eu não fico triste com o meu pai por ele conversar pouco comigo e por não me abraçar muito nos meus sonhos. Acredito que meus sonhos são assim porque eu não o conheci e, portanto, não me lembro dele. Não conheço muitos detalhes a seu respeito: não sei como era sua voz, o seu jeito de andar, a forma de sorrir, o calor dos seus abraços, como era o seu perfume etc. A imagem que tenho dele é a mesma que está nas fotografias antigas, nos meus sonhos a aparência dele nunca muda, meu pai nunca envelhece. É sempre uma imagem que está ali para eu apenas olhar e tentar compreender o que ele me diz com o seu silêncio...
Penso muito nos meus amigos que, ao longo de suas vidas, perderam seus pais. Eles choraram e sofreram, e acredito que muitos ainda choram e sofrem às vezes. Não passei pela mesma dor deles, e isso me conforta um pouco. Mas confesso que sinto uma pontinha de inveja deles porque, apesar da dor, eles possuem algo que eu nunca vou poder ter do meu pai: a lembrança. Eles conseguem se lembrar dos rostos dos seus pais, dos bons momentos que tiveram, dos abraços, dos sorrisos, dos perfumes e até mesmo das crises e das brigas. Meus amigos têm garantido o direito à lembrança e, por isso, podem sentir saudade dos seus pais. “Saudade”, sentimento ambíguo esse que, por um lado, nos dá um aperto e uma dor no coração por causa da ausência de alguém que já se foi, mas que, por outro lado, nos alivia a alma por meio da lembrança, a lembrança que nos permite sentir que aqueles que partiram ainda estão conosco.
Crescer sem pai desde os anos iniciais da vida significa sempre sentir falta de um pai, mas ser impossibilitado de sentir saudade do próprio pai, exatamente pela inexistência da lembrança. Contudo, eu não fico me queixando pelo fato de meu pai ter morrido, prefiro sim tocar a vida em frente, acreditando que Deus sempre faz a coisa certa. A única coisa da qual eu me queixo às vezes é pelo fato de eu não ter tido tempo de conhecer meu pai, porque dessa forma eu pelo menos poderia sentir sua presença de forma mais intensa, por meio da lembrança. Em suma, é isto: eu só queria ter conhecido meu pai para poder sentir saudade.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A história de uma "pérola" do rock

Há quem diga que o bom e velho rock and roll está morto. E quando vejo um grupo como o Restart ser indicado ao MTV EMA 2011, eu mesmo me pergunto se o rock já não morreu. Se há alguns anos atrás tínhamos várias boas bandas de rock surgindo, nos últimos anos, porém, garimpar um grupo de roqueiros que mereça ser ouvido tem sido tarefa difícil. É verdade que a internet nos auxilia na tarefa de encontrar novas bandas, mas, cá entre nós, boa parte das grandes bandas de rock que temos hoje já surgiu há mais de dez ou quinze anos. As últimas grandes febres musicais desse início de século XXI foram provocadas, basicamente, por artistas ligados ao pop. Este século ainda não viu o surgimento de seus próprios Beatles, Rolling Stones, The Doors, Pink Floyd, Led Zeppelin, AC/DC, U2 etc.
Mas nem sempre foi assim. O período entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 1990 foi marcado pelo surgimento de várias bandas de rock, e de boa qualidade. Bandas que chegaram ao estrelato, que fizeram um enorme sucesso, conquistaram a indústria, e o que é melhor: tudo isso sem abrir mão de autenticidade, identidade própria, atitude e letras bem escritas. Um bom exemplo disso pode ser visto no documentário Pearl Jam Twenty (2011, EUA), dirigido por Cameron Crowe. Como o próprio nome indica, o filme conta a história de uma das mais bem sucedidas bandas oriundas de Seattle, à época do grunge: o Pearl Jam.
O início do filme nos conta sobre o Mother Love Bone, banda que deu origem ao Pearl Jam. Vemos na tela a história da morte de Andrew Wood, vocalista do Mother Love Bone, que já é, logo de cara, uma das sequências mais emocionantes de todo o documentário (o depoimento de Chris Cornell sobre o impacto da morte de Wood é um dos mais tocantes de todo o filme). Seguindo a ordem cronológica dos fatos, Pearl Jam Twenty nos conta como os remanescentes do Mother Love Bone (Stone Gossard e Jeff Ament) se juntaram a Mike McCready, Dave Krusen e Eddie Vedder, para formar a banda.
A partir daí Cameron Crowe oferece ao espectador diversas sequências de shows do Pearl Jam ao longo das últimas duas décadas, imagens raras de arquivos e depoimentos antigos e recentes dos integrantes da banda. O documentário mostra as histórias da briga entre o Pearl Jam e a Ticketmaster, da “rixa” entre Vedder e Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, de como a banda atravessou os anos tendo que lidar com os interesses econômicos da indústria, interesses nem sempre compatíveis com os desejos artísticos do grupo, da tragédia no festival dinamarquês de Roskilde em 2000, quando nove pessoas morreram pisoteadas em um show da banda, e das trocas de bateristas (de Krusen ao atual Matt Cameron, passando por Matt Chamberlain, Dave Abbruzzese e Jack Irons).
O mérito de Pearl Jam Twenty é sua capacidade de agradar não só aos fãs da banda, mas também a todos os que gostam de um bom e velho rock and roll. De fato, o filme nos instiga a pensar sobre a trajetória desse estilo musical ao longo dos últimos anos. O Pearl Jam em seus anos iniciais é mostrado com todo o seu vigor e atitude frente ao modelo capitalista da indústria musical, especialmente por meio de fantásticas imagens de um jovem Eddie Vedder, em início de carreira, dando shows completamente bêbado e enlouquecido, escalando as estruturas metálicas dos palcos e se jogando na plateia. Ao longo do filme vemos o quão complexa é a história da banda que, apesar das críticas ao sistema, construiu sua trajetória dentro do sistema, mesclando uma identidade musical própria a um inquestionável bom desempenho comercial.
Também vemos na tela o processo natural de envelhecimento de uma banda de rock, Vedder não faz mais as loucuras do início da carreira. Aqui o filme Pearl Jam Twenty nos mostra que esse “envelhecimento” da banda veio acompanhado de transformações no seio da indústria fonográfica, com o pop ocupando cada vez mais um espaço maior na mídia, sendo emblemáticas, nesse sentido, as imagens dos Backstreet Boys e de Britney Spears estampadas em capas de revistas. Muita coisa mudou no mundo da música desde a época do surgimento do Pearl Jam até os dias atuais. Porém, ao fim do filme, vemos imagens recentes da banda e de seus shows, imagens que nos mostram que aquela boa e velha energia do rock ainda está viva, mesmo em um contexto histórico não muito favorável. Não, o rock ainda não morreu... Oh I, oh, I’m still alive!!!
Pearl Jam Twenty é um documentário belíssimo, muito bem montado e produzido. Por meio de vários depoimentos e de belas imagens, as histórias de uma grande banda de rock são contadas de maneira intensa e inteligente. Quanto à trilha sonora, esta dispensa comentários, uma vez que é composta por algumas das melhores canções do Pearl Jam, canções que mostram o porquê de a banda ser uma das “pérolas” que restaram da época do grunge. Só é lamentável o fato de esse documentário ter tido uma limitada exibição nos cinemas brasileiros. Posto isso, resta-nos aguardar o lançamento do filme em DVD, o que será um verdadeiro presente, tanto para os fãs que não puderam assistir ao documentário nos cinemas, quanto para os que puderam. Afinal de contas, Pearl Jam Twenty é um filme que os fãs de rock precisam ter em casa!

sexta-feira, 22 de julho de 2011

"A polícia é bravo"

Um casal de vizinhos aqui de casa possui um pequeno filho, de nome Marcos Paulo. O garoto não tem ainda nem quatro anos completos, mas é muito esperto, frequenta muito a minha casa, torce pelo Vasco, não pára nenhum minuto, é super bonito, agitado e tem "muita energia", como ele mesmo diz. Um dia desses ele veio até minha casa e ficou assistindo ao jornal comigo. Quando passou uma reportagem sobre a ação do corpo de bombeiros em um acidente de trânsito, Marcos Paulo disse: "Os bombeiros salva as pessoas que machucou nas ruas". Achei a frase super bonitinha. Depois de uns minutos, o jornal passou uma reportagem sobre uma operação policial e, ao ver os policiais na TV, Marcos Paulo logo falou, assustado: "A polícia é bravo... ela prende os homens". Ao ouvir isso fiquei intrigado: o menino fala bem dos bombeiros, mas demonstra medo quando vê a Polícia...
Uns dias depois minha mãe foi ao mercado da rua de cima, acompanhada pelo Marcos Paulo que, aliás, gosta muito da minha mãe. Ao voltarem, minha mãe contou que uma viatura da Polícia passou pela rua, o que deixou o Marcos Paulo assustado. Mais uma vez me perguntei: por que esse menino tem tanto medo da Polícia?
Nas últimas semanas o país acompanhou o caso do desaparecimento e morte do menino Juan, de onze anos, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. Mais recentemente, foi divulgada a conclusão da perícia de que o menino foi morto por quatro policiais militares. Nada mais revoltante, não? A Polícia que deveria proteger as pessoas é responsável pela morte de um menino de onze anos. Que Polícia é essa? 
Ora, os nossos policiais são colocados sob uma pesada rotina de trabalho, com pouca estrutura e baixos salários, além de terem recebido, muitas vezes, uma precária formação. Tudo isso somado à intensa corrupção nas instituições policiais e à crescente violência nos centros urbanos resulta em uma Polícia cruel, preparada para enfrentar uma guerra contra a população e não para protegê-la. Os policiais abusam de sua autoridade, batem, agridem, humilham, matam. Como diria o pequeno Marcos Paulo, "a polícia é bravo", não protege ninguém, mas pratica atos violentos contra a população. Logicamente, é preciso não generalizar, uma vez que há sim bons policiais, contudo, esse recente caso do menino Juan deve fazer-nos refletir sobre qual papel a Polícia tem desempenhado em nossa sociedade. 
Não sou inimigo da Polícia, nem seria louco para sê-lo, reconheço sua importância e sua necessidade, porém, a Polícia que temos hoje está longe de ser a ideal. Enquanto os indivíduos corruptos não forem, definitivamente, banidos das corporações e as condições de formação e de trabalho dos policiais não melhorarem, a nossa Polícia será apenas a Polícia que prende, mata e provoca medo em crianças pequenas. Precisamos de uma Polícia que nos proteja, não de uma que nos machuque.

domingo, 17 de julho de 2011

Ser pedestre em Uberlândia

Olá, leitores do meu blog! Após alguns dias sem escrever textos aqui, vim hoje compartilhar com vocês algo que tem me incomodado muito: o desrespeito aos pedestres nas cidades brasileiras.
Como vocês sabem, moro na cidade de Uberlândia, localizada no Triângulo Mineiro, uma cidade da qual eu gosto muito, mas que, como qualquer outra cidade, também tem seus defeitos. Desde o século passado, Uberlândia traz consigo o discurso do progresso e do desenvolvimento. Situada em um ponto estratégico do Brasil, a cidade cresceu muito e atraiu muitas pessoas para cá, não só de outras cidades da região, mas também de outros estados. Eu mesmo não nasci aqui, uma vez que sou carmelitano. Tendo hoje uma população que passa dos seiscentos mil habitantes e abrigando diversas empresas de médio e grande porte, incluindo muitas indústrias, Uberlândia é uma cidade bastante movimentada e seu trânsito já é bem pesado, sobretudo em determinados horários. A frota de veículos daqui já é a segunda maior do estado de Minas Gerais.
Dentro desse contexto, o pedestre sofre muito, e eu digo isso por experiência própria. Andando pelas ruas e avenidas da cidade, a impressão que tenho é que Uberlândia parece não ter sido feita para as pessoas, mas para os veículos. Um bom exemplo disso pode ser visto na situação atual da Avenida Rondon Pacheco, onde um viaduto está sendo construído no cruzamento com a Avenida João Naves de Ávila, além de estarem sendo feitas obras de construção de galerias. Não tenho nada contra essas obras, o viaduto certamente auxiliará no melhoramento do fluxo do trânsito, as galerias serão importantes para diminuir as enchentes que historicamente ocorrem na Rondon.
O que me incomoda muito é o fato de que as mudanças no trânsito que foram feitas no local, em consequência dessas obras, tais como mudanças na sinalização, no sentido de deslocamento dos carros e nos canteiros centrais, foram feitas para atender apenas aos motoristas. De fato, a circulação do pedestre ficou extremamente comprometida em alguns pontos, andar a pé pela Rondon é algo que tem sido cada vez mais difícil.
Como se isso não bastasse, há algo que complica ainda mais a situação do pedestre: o péssimo comportamento dos motoristas. Devo confessar que não sei dirigir e não tenho carteira de motorista, mas pelo que conheço a respeito do que é ensinado nas autoescolas, além do que é dito pela lei, no trânsito os maiores devem, ou deveriam, cuidar dos menores. Dito de outra forma, motoristas de ônibus e caminhões devem cuidar dos motoristas de carros que, por sua vez, devem cuidar dos motociclistas que devem cuidar dos ciclistas que, por fim, devem cuidar dos pedestres. Mas o que vejo na prática diária das ruas de Uberlândia é que os maiores estão ávidos por devorarem os menores. Todo mundo quer circular mais rápido, ninguém tem a paciência de esperar um pouco e fazer alguma gentileza no trânsito. O lugar que sobra para o pedestre, dentro dessa lógica de selva que impera no trânsito uberlandense, é o que corresponde à base de uma cruel cadeia alimentar, onde vidas humanas são constantemente ceifadas, em decorrência da correria, da imprudência e da falta de educação.
O pedestre sofre, ele não é nada, ninguém o vê, ninguém se importa com ele, ninguém o preserva. O que o pedestre deve fazer? Ora, o que eu, um pedestre, faço no meu cotidiano é tomar o maior cuidado possível. Atravesso sempre na faixa, não confio em nenhum motorista e evito andar com pressa. A pressa é inimiga do pedestre, afinal de contas, na pressa de chegar a algum compromisso, o pedestre pode nem chegar, já que ele pode ser a qualquer momento devorado por aqueles que estão acima dele na cadeia alimentar do trânsito.
Por fim, o que peço é uma mudança de cultura e de hábitos. Afinal de contas, mesmo com tantos veículos, tanta gasolina, tantas máquinas, tanto cheiro de óleo e barulho de buzina, uma cidade é feita de pessoas e não de máquinas. Que as pessoas, portanto, sejam a prioridade no trânsito!

sexta-feira, 20 de maio de 2011

"Os Agentes do Destino": uma ótima dica de cinema


Há uma semana entrou em cartaz no Brasil um filme bastante interessante, uma obra que infelizmente não tem chamado muita atenção por parte da mídia, uma vez que concorrer com filmes como Velozes & Furiosos 5, Thor, Piratas do Caribe - Navegando em Águas Misteriosas e Padre é difícil, já que esses filmes possuem um maior apelo comercial. Todavia, o fato é que a obra Os Agentes do Destino (2011, Estados Unidos) é um filme que merece ser visto, uma película que permite uma rica reflexão sobre a História.
Os Agentes do Destino é uma mistura de romance, ficção científica e religião. Dirigido por George Nolfi (em uma excelente estreia como diretor), que também assina o roteiro (baseado em um conto de Philip K. Dick, autor que já havia inspirado filmes como Blade Runner - O Caçador de Androides e Minority Report - A Nova Lei); o filme nos conta a história de David Norris (interpretado pelo carismático e sempre competente Matt Damon), um político que após perder a disputa eleitoral para o Senado, em decorrência de um escândalo, acaba por conhecer e se apaixonar por uma linda mulher chamada Elise (interpretada pela belíssima e talentosa Emily Blunt). A atração entre os dois é extremamente forte, porém, Norris acaba descobrindo que toda a sua vida segue um plano que já está definido. Pior, Norris descobre que Elise está fora desse plano, e que ele não deve ficar com ela.
O que o protagonista deve fazer? Ao longo da trama, Norris descobre que ir contra o que está planejado pelo "Presidente" (que aparentemente é Deus) pode interferir negativamente no seu futuro político e no futuro artístico de Elise, que é uma dançarina. Isso sem falar que não seguir o plano é uma atitude complicada, uma vez que os Agentes, homens que estão a serviço do "Presidente" e que possuem por missão garantir que o plano seja seguido, sempre aparecem na sua vida e interferem nas coisas, através de seus poderes fantásticos. Apesar desses obstáculos, o nosso herói vai enfrentar os desígnios do destino e lutará para ficar ao lado da mulher que ama.
Uma história dessas poderia resultar em um simples romance meloso, mas felizmente não é o que Nolfi nos proporciona. O diretor fez de Os Agentes do Destino um filme que aproveita ao máximo os talentos de seus atores e que, através de boas cenas de perseguição, da simplicidade dos seus efeitos visuais/especiais e da inteligência do seu roteiro e da sua montagem, aparece para o espectador como sendo uma ótima oportunidade de refletir sobre a História.
Em primeiro lugar, a questão de existir um plano a ser seguido em nossas vidas suscita um tema ligado à Filosofia da História, a saber, o debate sobre o sentido da História. Há ou não um sentido para o processo histórico que se desenrola ao longo dos séculos? Ao descobrir que há um plano para sua vida (se tornar presidente dos Estados Unidos), Norris descobre que há um sentido predeterminado para a sua história de vida, uma dolorosa descoberta.
Em segundo lugar, temos no filme a questão do papel do sujeito na História. Se há um sentido para a sua vida que já está definido, o que fazer diante disso? Ao longo do filme, vemos o personagem de Damon tomar as rédeas do seu destino, sair dos caminhos designados pelo plano, desafiar os Agentes e o Presidente, tudo pelo seu amor por Elise. É o sujeito que atua na História, lutando contra forças maiores que querem pensar e agir por ele.
Em terceiro lugar, temos em Os Agentes do Destino a questão da continuidade/descontinuidade na História. George Nolfi trabalha esse tema de uma forma bela e inteligente, através dos cadernos dos Agentes. Nesses cadernos há uma infinidade traços que mostram o curso da vida de Norris, o caminho que deve ser seguido por ele. Mas quando o protagonista toma uma atitude contrária ao plano, toma um caminho diferente, vemos surgirem nas folhas dos cadernos traços novos que mostram que ele se desviou. Os desenhos que mostravam o caminho contínuo ganham traços que mostram as rupturas e as descontinuidades.
Por fim, mas não menos importante, temos o acaso. E aqui está uma das grandes sacadas do filme. Apesar de existir um plano a ser seguido e Agentes poderosos que trabalham exaustivamente para que tudo aconteça de acordo com tal plano, há algo que nem os Agentes e nem o "Presidente" podem controlar: o acaso. Apesar de Elise não estar no plano de sua vida, Norris a encontra pelas ruas. Toda a estrutura de poder ligada aos Agentes revela-se frágil diante do acaso, elemento que muitas vezes se fez e se faz presente na História da humanidade.
Emocionando no romance, nos deixando tensos nas cenas de perseguição, tendo um bom toque de ficção científica e sendo um filme escrito e dirigido com inteligência, Os Agentes do Destino merece ser visto. Filme interessante e que permite que o espectador reflita, tem um final que, apesar da dose de deus ex machina, nos estimula à ação: a folha que mostra o plano da vida de Norris fica em branco, ele está pronto para seguir sua vida com autonomia, está apto para o exercício da liberdade. Não deveria ser esse o fim almejado por todos nós, a liberdade?
É por tudo isso que digo: se Os Agentes do Destino estiver em cartaz na sua cidade, vá ao cinema e assista, pois vale muito a pena!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Hipocrisia e Preconceito

Nas últimas semanas o debate sobre o preconceito no Brasil se intensificou consideravelmente. Das declarações polêmicas do deputado Jair Bolsonaro até o recente reconhecimento da união estável de casais homossexuais por parte do STF, muito se tem falado sobre discriminação racial e de orientação sexual. Como observador da realidade social acho extremamente válido que a sociedade esteja discutindo temas tão importantes como esses. Todavia, e há sempre um todavia, há algo errado em toda essa discussão, há uma hipocrisia que impera nos discursos supostamente defensores da diversidade e do respeito às diferenças.
Saia pelas ruas perguntando às pessoas se elas são racistas. Você possivelmente ouvirá uma sequência de sonoras respostas negativas, “Racista, eu? De jeito nenhum!”, dirá a maioria. Pergunte a essas mesmas pessoas se elas conhecem alguém que é racista. “Sim, conheço sim!”, muitos possivelmente responderão. Ninguém se confessa racista, mas todos conhecem alguém que é racista. Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que há algo errado aí: afinal de contas, onde estão os racistas?
No caso do reconhecimento, por parte do STF, da união estável de casais homossexuais, temos visto recentemente muitas manifestações de apoio, muitas afirmações de que “esse foi um passo importante na luta contra o preconceito”. Não quero diminuir aqui a importância dessa conquista do movimento gay, que já afirmou que também continuará lutando pela criminalização da homofobia, mas duvido que tal medida do STF vá acabar com o preconceito. O racismo, por exemplo, foi criminalizado no Brasil, mas apesar da existência de tal lei, o preconceito racial ainda existe no nosso país. Se alguém ainda duvida disso, peço que converse com algum(a) negro(a) para confirmar o que estou dizendo.
O problema parece estar no fato de que a sociedade brasileira quer resolver tudo por meio de leis, através do aparato jurídico, quando o correto seria investir em um sistema de educação que preparasse as pessoas para o convívio com o que lhes é diferente. As ciências humanas poderiam inclusive auxiliar muito essa educação para a diversidade. Dessa forma, o preconceito poderia ser combatido de forma mais consistente, deixando de simplesmente ser varrido para debaixo do tapete da hipocrisia.
Digo isso porque nossa sociedade tem sido bastante hipócrita em todos esses debates. Muitos dos que dizem concordar com o reconhecimento da união estável de casais homossexuais não aceitariam se um de seus filhos fosse gay. Muitos dos que dizem que não são racistas não aceitam pessoas de outras etnias em determinados espaços e ocasiões, preferem virar o rosto, evitar a aproximação. Neste sentido, é possível acusar o deputado Bolsonaro e todos os “religiosos” que se opuseram à medida do STF de serem preconceituosos, mas temos que reconhecer que hipócritas eles não são.
Não se trata de defender as pessoas preconceituosas, mas apenas de salientar o fato de que, muitas vezes, as mesmas pessoas que defendem o respeito à diversidade não conseguem conviver com opiniões diferentes das suas: o gay que levanta a bandeira da liberdade de orientação sexual, opõe-se fortemente à liberdade de opinião alheia, quer criminalizar o posicionamento do outro. Não há aí dois pesos e duas medidas? Os gays possuem sim o direito de serem gays, não devem ser barrados de lugares, não devem ser impedidos de exercerem determinados cargos nas empresas onde trabalham, devem ter o casamento gay permitido pela legislação, devem ter a liberdade de se beijarem em público sem serem constrangidos por isso.
Mas as pessoas que são contra o homossexualismo também devem ter o direito de se manifestarem. O que deve ser combatida é a violência física e psicológica muitas vezes praticada contra os gays, mas não o direito de dizer “Acho estranho o homossexualismo”. Não sejamos hipócritas, tudo o que nos é diferente gera estranhamento, eu mesmo acho esquisitas determinadas “cenas” que vejo pelas ruas, mas não saio por aí espancando homossexuais, tenho inclusive colegas de faculdade que são gays e procuro sempre respeitá-los, convivo com eles e até brinco com eles. O que não posso tolerar é o discurso politicamente correto do respeito às diferenças que, apesar de tentar defender a diversidade, acaba por provocar o efeito inverso que é exatamente a tentativa de homogeneizar a opinião pública, discriminando posturas diferentes.
Os gays têm o direito de serem gays, podendo exercer os direitos e deveres de qualquer cidadão brasileiro, mas isso não deve acabar com o direito à liberdade de opinião dos que são são contra o homossexualismo. O que se pede aqui é que as discussões sobre a diversidade cultural, étnica, de orientação sexual etc. sejam feitas através do diálogo aberto, sem violência, onde possamos aprender a melhor conviver com o que nos é diferente, sem que tenhamos que abdicar integralmente das nossas posturas individuais em nome de um pretenso país coeso, harmonioso e sem conflitos. Dessa forma, a hipocrisia poderia deixar de ser praticada, como diria aquela música do Skank: "Se você não gosta dele / Diga logo a verdade / Sem perder a cabeça / Sem perder a amizade..."

domingo, 17 de abril de 2011

Eu Queria Ser Bono Vox



Acordei hoje em uma bela e azul manhã de Domingo, ainda com uma coisa que, já há alguns dias, não me sai da cabeça: o show do U2. Há exatamente uma semana realizei um dos meus maiores sonhos assistindo à apresentação dos quatro irlandeses (gosto de chamá-los assim), no Estádio do Morumbi em São Paulo. Noite inesquecível, um grande espetáculo! Ainda hoje posso fechar os olhos e me ver, completamente feliz, dentro do estádio, acompanhado por 90 mil pessoas, próximo a uma das “pernas” da Garra (nome do palco da Turnê 360°), cantando, pulando, gritando, chorando... Assistir a um show do U2 não é apenas ver uma bela apresentação de rock, é passar por uma experiência musical, visual, emocional, política, espiritual, religiosa...
Lembro-me de assistir pela televisão, aos nove anos de idade, a uma reportagem sobre uma banda irlandesa que estava no Brasil para fazer alguns shows (só mais tarde eu iria descobrir que se tratava da Turnê PopMart que passou pelo Brasil em 1998). Lembro-me de ver na tela o nome da banda, bem simples, uma letra “U” seguida pelo número “2”, U2. O programa de TV também mostrou a banda cantando uma canção chamada “Where The Streets Have No Name”, o que me marcou muito. Sou capaz de sentir agora a mesma emoção que senti quando ouvi pela primeira vez a excelente guitarra de The Edge, a bateria forte de Larry Mullen Jr. e o baixo marcante de Adam Clayton, enquanto Bono Vox cantava: “I wanna run... I want to hide...”.
Eu não passava de uma criança, um simples garoto de uma cidade mineira do interior, mas a partir daquele momento comecei a conhecer melhor aquela banda. Através de alguns coleguinhas da escola e, principalmente, de um tio, tudo o que dizia respeito ao U2 era objeto do meu interesse, de revistas a fitas cassete. Alguns anos depois comecei a trabalhar como office boy em um escritório e, com o meu primeiro salário, comprei um CD original do U2: o álbum All That You Can’t Leave Behind, que havia sido lançado em 2000. Canções como “Beautiful Day”, “Elevation”, “Walk On”, “Kite” e “When I Look At The World” embalaram a minha adolescência, além das clássicas canções que a banda havia feito nos anos 1980 e 1990.
Com o advento da internet e do DVD, comecei a “ver” o U2 em shows e entrevistas, o sonho de assisti-los ao vivo foi crescendo dentro de mim como uma árvore, ou seja, começou como uma pequena semente e se transformou em uma planta gigantesca, com enormes galhos e folhas verdes. Eu queria ir a um show deles, mais ainda, eu queria ser Bono Vox. Todas as noites quando me deitava eu ficava acordado na cama, sonhando acordado, imaginando-me em cima de um palco, emocionando milhares de pessoas, levando uma mensagem de amor e paz a elas, puxando uma garota da plateia (que nos meus devaneios sempre era alguma garota da escola pela qual eu estava apaixonado), dançando com ela em cima do palco enquanto cantava “With Or Without You”, ao fim da qual eu dava um selinho na boca da moça. Coisas de garoto que gostava de rock, acredito que a maioria das pessoas já sonhou em ser um astro da música, ocupando o lugar do seu ídolo máximo.
Sim, eu queria ser Bono Vox. Com o passar dos anos, porém, veio a maturidade e as coisas de garoto foram sendo deixadas de lado. É verdade que nunca deixei de gostar do U2, pelo contrário, continuei comprando CDs da banda e me informando sobre eles na internet. Só que o meu interesse começou a se voltar mais para as características do som da banda, os acordes, os arranjos, o ritmo, a melodia, os detalhes quase inaudíveis de cada música, as mensagens presentes nas belíssimas letras. O som da banda sempre foi capaz de me emocionar bastante e quando os quatro irlandeses vieram ao Brasil em 2006, durante a Turnê Vertigo, assisti ao show pela TV e, chorando, prometi a mim mesmo que iria ao show dos caras na próxima vez que viessem ao Brasil.
Até que no ano passado foi divulgado que a Turnê 360° passaria pela cidade de São Paulo. Não pensei duas vezes, juntei uma grana, comprei um pacote de viagem e fui ao show. Posso dizer que foi uma das melhores coisas que já fiz na vida. O U2 sabe mesmo fazer um show, sabe proporcionar um grandioso e único espetáculo. No Estádio do Morumbi luzes surgiam dos mais diversos lugares durante a apresentação; o incrível telão em 360° (que se movia de cima para baixo, ora se expandindo ora voltando ao tamanho normal) mostrava detalhes do show e vídeos com mensagens políticas; o som era alto e potente, entrando pelos ouvidos e indo direto ao coração.
Foi mesmo um momento de sonho e fantasia “Even Better Than The Real Thing”, como sugeriu a primeira música do show. Durante aquelas mais de duas horas eu sonhei, vibrei, me emocionei, cantei, chorei, gritei e pulei. O Morumbi parecia pequeno para mim, o mundo parecia pequeno para mim. Na minha mente só havia o U2, a Garra, aquelas 90 mil pessoas e eu. Ao ver a performance de Bono no palco não pude deixar de pensar: e se fosse eu ali no lugar dele?
Pois é, por um instante o garoto de dez ou doze anos de idade ressurgiu das cinzas, e eu quis novamente ser Bono Vox, tal como na adolescência. Tudo isso foi há uma semana, todavia parece que ainda está acontecendo. Acho que ainda estou no Morumbi e ainda sinto de vontade de ser um astro do rock! Pelo que vejo, ainda existe um pouco daquele garoto dentro de mim... São coisas que apenas a música pode proporcionar, e por isso eu digo: Viva o rock! Viva a Irlanda! Viva o U2!

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Jornalismo Televisivo Policial em Uberlândia: a crueldade de um discurso

A cidade de Uberlândia possui algumas emissoras de TV que cuidam da cobertura de notícias da cidade e da região. Há alguns anos o jornalismo policial nessas emissoras vem ganhando destaque, mas, para além do caráter informativo, os programas dessa natureza são marcados pelo preconceito, pelo sensacionalismo e pela cobertura simplista e dicotômica da realidade social. Gostaria, neste texto, de tecer algumas considerações a respeito de dois desses programas: o Chumbo Grosso, da TV Vitoriosa (afiliada SBT) e o 190 Paranaíba, da TV Paranaíba (afiliada Record).

O Chumbo Grosso é apresentado por André Silva, indo ao ar de segunda à sexta entre as 7h e 8h da manhã. Tão sugestiva quanto o nome do programa é a vinheta do mesmo, na qual vemos o nome do programa e o desenho de uma mira de arma de fogo. O programa cobre as diversas ocorrências policiais da cidade e da região: roubos, furtos, acidentes de trânsito, brigas, assassinatos, tráfico de drogas, casos de violência contra a criança etc. A principal característica do referido programa é o uso cruel das imagens mais fortes que a violência urbana pode proporcionar. Os corpos de homens e mulheres assassinados são friamente mostrados pela câmera que faz o uso de closes para mostrar os ferimentos provocados por balas e facas, bem como o chão sujo de sangue. O sensacionalismo de Chumbo Grosso não respeita as pessoas assassinadas e nem os familiares dessas pessoas, já que todo criminoso certamente possui um pai, uma mãe, uma família ou alguém que chora sua morte. O programa da TV Vitoriosa mostra os corpos humanos como se fossem meros objetos, sem respeito, sem humanidade, sem solidariedade. André Silva também faz, em muitos momentos, o uso de humor sarcástico para falar dos criminosos que aparecem no programa. Não há nenhuma tentativa de compreensão dos caminhos que levam alguém ao mundo do crime, apenas a fala simplista e dicotômica que representa o criminoso como inimigo da sociedade, sociedade essa que possui pessoas do "bem" e pessoas do "mal".

Por sua vez, o 190 Paranaíba, apresentado pelo Magoo, faz por merecer o nome que possui: 190. Cobrindo os mesmos tipos de fatos que o Chumbo Grosso e marcado por um humor bem mais negro, o 190 Paranaíba também vai ao ar pela manhã, das 7h45 às 8h45. O 190 não mostra imagens tão fortes quanto o Chumbo Grosso, mas também é marcado por um discurso bastante cruel. Aqui, os criminosos são rotulados como inimigos da sociedade e dos "homens de bem". Maggo não perde nenhuma oportunidade de fazer um jogo da velha com os dedos das mãos (simbolizando a cadeia) e falar "190 neles", um de seus bordões. O criminoso é representado como alguém que deve ser caçado e preso. O humor negro do programa chega ao nível de dar a "Comenda Mala Sem Alça" para indivíduos que cometeram certos crimes. Pessoas alcoolizadas também são constantemente ridicularizadas e humilhadas pelas imagens e entrevistas do programa. Mas talvez o elemento mais cruel do discurso veiculado pelo 190 Paranaíba esteja, de fato, no início do programa. Sempre no início, o apresentador Magoo recebe uma "visita" de um outro comunicador da emissora que está segurando uma ratoeira gigante. O que está escrito na ratoeira? Nada mais nada menos que os dizeres "Big Mouse Trap" e "190 Paranaíba". A ratoeira sugere que o programa mostrará os "ratos da sociedade", ou seja, os criminosos, sendo capturados. Qualquer semelhança com o discurso nazista de Adolf Hitler, segundo o qual os judeus eram os "ratos" que infestavam a sociedade alemã, não é mera coincidência.

A sociedade brasileira contemporânea vive um momento no qual a violência urbana parece cada vez mais próxima e intensa. O "medo do outro" é um sentimento cada vez mais intenso. Se crimes existem, que sejam investigados e que os criminosos sejam punidos. Denunciar a crueldade do discurso do jornalismo televisivo policial não significa "passar a mão na cabeça" dos assassinos e ladrões que existem na sociedade. Todavia, a forma da sociedade lidar com o mundo do crime precisa mudar. Os criminosos não são inimigos da sociedade, são pessoas que entraram no mundo do crime pelos mais variados motivos, motivos esses que os programas televisivos aqui analisados não mostram. Nesse sentido, ao invés de informar sobre a complexidade da realidade social, os referidos programas perpetuam uma imagem simplista da sociedade, imagem na qual as "classes perigosas" são completamente destituídas da sua condição de seres humanos, sendo tratadas como objetos ou como "ratos". Ao invés de informar, de maneira responsável, sobre as ocorrências policiais, Chumbo Grosso e 190 Paranaíba se valem do sensacionalismo e do humor negro para disseminar o preconceito e a intolerância. Se o jornalismo tem por função informar a sociedade a respeito dos fatos que nela ocorrem, que essa função seja feita de maneira madura a fim de que a sociedade seja efetivamente "informada" e não "enganada" por um discurso que mais deturpa a realidade social que informa sobre ela.  

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A Busca pelo Triunfo nos Filmes “Cisne Negro” e “O Vencedor”

Vencer, triunfar, atingir um determinado objetivo, eis uma das mais antigas características do ser humano: sonhar e lutar para realizar os seus sonhos. O ser humano sempre busca algo, sempre deseja algo, mas os caminhos para se chegar a tal fim nem sempre são fáceis e podem, por vezes, se transformarem em um tortuoso labirinto do qual pode não haver saída. Sobre essa busca pelo triunfo e pela realização pessoal, foram recentemente lançados dois filmes que, apesar de serem muito diferentes entre si, apresentam alguns pontos em comum: Cisne Negro e O Vencedor (ambos de 2010, EUA).

O jovem e já cultuado diretor Darren Aronofsky dirige Cisne Negro, um tenso e aterroizante thriller psicológico que conta a história de Nina (interpretada de forma genial por Natalie Portman), uma delicada bailarina que apresenta um sentimento de obsessão em alcançar a perfeição em sua arte. Quando a primeira bailarina da companhia de balé da qual Nina faz parte se aposenta, a personagem de Natalie Portman é escolhida pelo diretor da companhia, Thomas Leroy (Vicent Cassel), para estrelar uma nova montagem do balé O Lago dos Cisnes, do russo Tchaicovsky, no papel da Rainha Cisne, interpretando tanto o cisne branco quanto o cisne negro.

Nina quer interpretar o papel de forma perfeita e, para a realização de tal objetivo, irá mergulhar bem fundo no universo de O Lago dos Cisnes, especialmente no universo do cisne negro, universo sombrio e cheio de malícia. A dificuldade de Nina está no fato apontado pelo diretor Thomas, a saber, o fato de ela ser perfeita para o papel do cisne branco (ela é ingênua, delicada, meiga), mas precisa adquirir a essência do cisne negro (o poder de sedução, a malícia, o lado sombrio). Nina se espelha em várias personagens: na antiga primeira bailarina da companhia, Beth (Winona Ryder); na sua colega Lilly (Mila Kunis), com a qual nutre uma complexa relação de atração física, inveja e concorrência; e na sua mãe, Erica (interpretada brilhantemente por Barbara Hershey), uma bailarina frustrada que vê no sucesso da filha uma realização que ela própria não pôde alcançar passado.

Seguindo as exigências do diretor da companhia, Nina vai descobrir o sexo, a sedução e a malícia, características básicas para a composição do cisne negro. A meiga bailarina quase infantil, sobretudo porque sempre foi tratada como uma boneca pela mãe, vai aos poucos se tornando mulher, libertando-se de suas amarras interiores que lhe impediam de ser o cisne negro. Mas Nina acaba se prendendo a outras amarras, as amarras do desejo de perfeição. Com o objetivo de ser perfeita, Nina mergulha cada vez mais fundo no universo do cisne negro, mergulho o qual pode não ter volta.

O mundo do balé tal como representado em Cisne Negro é sombrio e, por vezes, aterroriza o espectador. A obra de Aronofsky mostra o mundo do balé com toda a sua beleza (a música, os cenários, a coreografia, o figurino e a maquiagem), mas também, e principalmente, com tudo o que acontece nos bastidores e que não se vê no palco (os ferimentos, o sangue, os ossos que estalam, as sapatilhas apertadas, os pés deformados, a concorrência entre as bailarinas, o diretor mulherengo que se aproveita das bailarinas, as pressões exteriores e interiores). Dentro desse contexto, Nina perde a sua sanidade mental e vai para um universo que se situa entre a realidade e a fantasia, entrando em uma sinistra dança com a loucura e com a esquizofrenia. Nina buscará se libertar dos seus medos e da sua insegurança, rumo à arte perfeita e à tragédia: a plena realização da perfeição artística virá junto com a autodestuição.

A obsessão pela perfeição artística de Nina espelha-se na perfeição estética do próprio filme dirigido por Aronofsky. Cisne Negro possui um elenco que não decepciona em momento algum, a fotografia do filme é escura e sombria (grande parte do filme se passa à noite), a direção de arte é impecável, os efeitos visuais são impressionantes, a edição é extremamente bem feita e o filme tem a duração exata, nem muito longo nem muito curto. Se Nina é arrebatada e absorvida pelo seu desejo de perfeição, o espectador de Cisne Negro é arrebatado e absorvido pelo universo paranoico da bailarina interpretada por Natalie Portman, sendo constantemente levado ao terror e à tensão de um mundo onde os espelhos refletem não apenas a realidade física, mas também o estado de espírito de uma mente à beira do colapso.

David O. Russell ainda não é tão cultuado quanto Aronofsky, mas pode vir a sê-lo a partir da sua direção de O Vencedor. Partindo de uma história baseada em fatos reais, Russell dirige esse filme de forma primorosa, fazendo dele uma obra tão interessante quanto Cisne Negro, ainda que de uma maneira diferente. O Vencedor conta a história de Micky Ward (Mark Wahlberg) e Dicky Ecklund (Christian Bale), dois irmãos que são ligados pelo boxe. Dicky foi um promissor boxeador no passado e chegou a enfrentar o campeão mundial Sugar Ray Leonard, mas jogou a sua carreira fora ao se viciar em drogas, especialmente no crack. Micky cresceu admirando o irmão e vivendo à sua sombra, uma vez que toda a família sempre privilegiou Dicky devido ao seu passado. Sendo treinado por Dicky, Micky é um boxeador em busca vitórias e conquistas no mundo do esporte, tendo que lidar com uma família desestruturada e que tenta controlar a sua vida.

Se Cisne Negro mostrou o lado sombrio do mundo do balé, ou seja, os acontecimentos aterrorizantes que se dão atrás das cortinas; O Vencedor, por sua vez, mostra o que há no mundo do boxe para além das glórias que se dão no ringue. Pode-se dizer até que o filme de David O. Russell não é um filme de boxe, mas uma obra que parte do mundo do boxe para tratar de conflitos humanos mais amplos. De qualquer modo, são duas obras que tratam do desejo de triunfar, de vencer, de superar os próprios limites e as dificuldades impostas pelo meio.

Mas O Vencedor difere de Cisne Negro em uns aspectos importantes. Se Natalie Portman faz a protagonista do filme de Aronofsky de modo a ser a grande estrela do filme, não havendo concorrentes para ela; Mark Wahlberg, apesar de não estar ruim, tem a sua atuação completamente ofuscada pelas extraordinárias atuações de Christian Bale e Melissa Leo. Bale está praticamente irreconhecível, sobretudo na primeira parte do filme, no papel de um viciado em crack que treina o irmão mais novo de uma forma muito negligente, atrasando-se constantemente nos treinos. Vale dizer que o ator realizou um primoroso trabalho de composição do personagem, sobretudo no que se refere ao gestual e ao visual extremamente magro. Melissa Leo, por sua vez, faz a autoritária e dominadora mãe de Dicky e Micky, uma mãe que empresaria a carreira do filho mais jovem de uma forma extremamente desorganizada.

Bale e Leo constroem seus personagens de modo que o espectador chega a sentir raiva deles, notadamente nos momentos em que eles mais atrapalham e desejam controlar a carreira de Micky. Mas os personagens Dicky e Alice também emocionam o espectador, espacialmente naquela que talvez seja uma das sequências mais tocantes dos últimos anos no cinema de Hollywood: a cena em que Dicky começa a cantarolar “I Started a Joke”, dos Bee Gees, para a mãe e ela começa a cantar também. A música representa perfeitamente o que Dicky virou para a cidade: uma piada.

Alguns paralelos entre os dois filmes podem ser traçados. O primeiro diz respeito às mães Erica (Bárbara Hershey), a mãe de Nina em Cisne Negro, e Alice (Melissa Leo), a mãe de Dicky e Micky em O Vencedor. Erica é uma mãe que trata a filha como uma frágil boneca, projetando na filha os sonhos que não pôde realizar quando jovem. Alice é uma mãe que protege seus filhos da mesma forma que Erica, ou seja, de uma maneira extremamente exagerada, projetando em Micky o pugilista que Dicky não conseguiu ser. Mas se Erica e Nina vivem sozinhas e tem seus conflitos de mãe e filha (sempre considerando que Erica exista de fato, porque em alguns momentos de Cisne Negro parece que a mãe da bailarina é apenas uma projeção da mente obsessiva de Nina); Alice tem uma relação mais complexa com os filhos, uma vez que se casou duas vezes e não é mãe apenas de Dicky e Micky, mas de várias filhas mulheres, interpretadas por um elenco feminino que não desafina e atua brilhantemente bem em conjunto. De fato, a família de Dicky e Micky é bastante desestruturada, com brigas, confusões, bebidas alcoólicas e todos se intrometendo na vida e na carreira de Micky.

Se Nina vive sufocada pela mãe no filme de Aronofsky, Micky vive sufocado por toda a sua família em O Vencedor, ambos lutarão para se libertarem dos grilhões da instituição familiar. Nina procura sua liberdade metamorfoseando-se cada vez mais no cisne negro, mudando suas atitudes para alcançar a arte perfeita, ou seja, absorver ao máximo a essência do cisne negro. Micky procura se libertar da influência da mãe e dos irmãos, contando com a ajuda da namorada Charlene (Amy Adams) e do pai, George (Jack McGee), que é o integrante mais responsável da família. Assim como Nina, o pugilista conseguirá alcançar o seu objetivo ao se tornar campeão mundial.

Que o leitor não se engane. Micky não é um herói, tal qual Rocky Balboa o é em Rocky, Um Lutador (1976, EUA) e, apesar de o espectador torcer por ele durante as cenas de luta, não se chega às lágrimas ao fim do filme. O Vencedor expõe de forma não melosa os dramas das relações humanas que não aparecem nos ringues do mundo do boxe, o que gera um resultado muito interessante. A consagração de Micky ao fim do filme não é uma glória exclusiva dele, o personagem de Mark Wahlberg divide o seu triunfo com os outros personagens.

Esteticamente, O Vencedor e Cisne Negro são bastante diferentes. Como já foi dito, o filme de Aronofsky é marcado por um perfeccionismo estético impressionante. Por sua vez, a obra de Russell é de um realismo que beira o naturalismo: as camisetas estão sempre marcadas pelo suor; os cenários, carros, objetos e roupas são propositalmente simples, sujos, desarrumados e sem nenhum requinte; as pessoas da cidade são dolorosamente “bobas” e feias, passando ao espectador a exata imagem de uma pequena cidade abandonada onde parece existir uma deficiência mental/intelectual coletiva, em uma espécie de retrato feio da sociedade norte-americana. O Vencedor ainda é marcado por uma estética quase documental em alguns momentos, como nas cenas de luta onde as imagens foram feitas com o uso de câmeras televisivas.

Como se vê, Cisne Negro e O Vencedor são obras diferentes que apresentam alguns elementos em comum. Em ambos vemos a busca pelo triunfo; Cisne Negro explora os bastidores do mundo do balé, ao passo que O Vencedor faz o mesmo exercício com o mundo do boxe; o balé, a arte, é quase que central no filme de Aronofsky; o boxe, por sua vez, não tem o mesmo papel na obra de Russell, uma vez que há outros temas que também tem grande importância dentro do filme, tais como a família e as drogas; a grande beleza estética de Cisne Negro está relacionada com a importância da beleza no balé e na arte de forma geral, o fato de O Vencedor não possuir imagens tão “belas” talvez esteja relacionado ao fato de que a beleza não tenha tanta importância no mundo do boxe, onde a força, a velocidade e a técnica de luta dominam. Todavia, nos dois filmes a arte surge como um elemento que engendra a ação: no Cisne Negro o balé guia a vida de Nina, em O Vencedor vemos os efeitos que um documentário realizado pela HBO produz nas vidas dos personagens.

Por fim, temos que dizer que Aronofsky e Russell fizeram dois belos filmes, cada um a seu modo. Filmes que merecem ser assistidos com muita atenção e que são dignos das indicações e prêmios recebidos até aqui. Cisne Negro e O Vencedor: dois filmes sobre a busca humana pelo triunfo, no eterno desejo (e por que também não dizer “na eterna necessidade”?) de vencer e de se superar.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O tema da vida após a morte sob a direção de Clint Eastwood: notas sobre "Além da Vida"

O tema da vida após a morte sempre instigou as pessoas e já estimulou uma série de filmes, livros, novelas e etc. Talvez esta seja uma questão que todos nós já fizemos ou vamos nos fazer um dia: o que acontece depois que morremos? Questão complexa e que sempre nos intriga, afinal de contas, o homem é o único animal que sabe que vai morrer um dia.
A respeito desse tema, já está em cartaz no Brasil mais um belo filme de Clint Eastwood: Além da Vida (2010, EUA). Trata-se de um excelente drama dirigido com maestria por Eastwood e estrelado por Matt Damon. O filme nos apresenta três histórias que, ao decorrer da película, vão acabar se cruzando: George (Matt Damon) é um vidente que consegue se comunicar com os mortos e tenta levar uma vida normal, uma vez que considera que seu dom é, na verdade, uma verdadeira maldição que sempre o atrapalha no seu cotidiano; Marie (interpretada elegantemente por Cécile De France) é uma jornalista francesa que passou por uma experiência de quase morte na Tailândia durante um tsunami; Marcus (interpretado pelos gêmeos Frankie McLaren e George McLaren) é um garoto de Londres que acabou de perder o seu irmão gêmeo e procura por respostas a respeito da morte e da vida após a morte.
Clint Eastwood não faz um drama de arrancar lágrimas, mas segue por um caminho muito mais interessante do que o do melodrama simplista. Além da Vida é um filme bastante sensível e que trabalha o tema da vida após a morte de forma madura. Eastwood parte do roteiro de Peter Morgan e dirige uma obra que não especula exageradamente sobre o aspecto do mundo do além. Não vemos "céu", "inferno" ou "purgatório", como certamente já vimos em outras obras e ainda veremos em tantas outras, mas apenas rápidos flashes do além, nos quais vemos vultos e rostos não muito bem definidos. Além da Vida também não traz cenas de pessoas entrando em transe ou sendo espalhafatosamente incorporadas por espíritos. Pode-se dizer que o filme trata do tema de forma bastante respeitosa e é mais focado nos modos como a morte interfere nas relações humanas.
Um dos destaques do filme vai, sem sombra de dúvidas, para o elenco. Matt Damon interpreta um homem solitário e condenado a viver com um dom, ou uma maldição, que ele não pediu para ter. Cécile De France interpreta uma jornalista que, afetada por sua experiência, passa a ter dificuldades para continuar no concorrido universo da televisão e no seu relacionamento amoroso. Os atores gêmeos Frankie e George McLaren interpretam os gêmeos Marcus e Jason de forma bastante comovente e são a grande surpresa do elenco. Outro destaque vai para a trilha sonora que, por ser bastante leve e discreta, contribui para que o filme seja um drama inteligente e maduro e não um melodrama feito para levar o espectador às lágrimas fáceis. As sequências da tsunami e do atropelamento de Jason também merecem destaque, seja pelos efeitos visuais/especiais da primeira, seja pela capacidade da segunda de comover fortemente o espectador.
Além da Vida é um grande filme que mostra como Clint Eastwood é um mestre em contar histórias. É um filme que aborda um tema bastante complexo e delicado, mostrando o quanto a vida humana é frágil e cheia de mistérios. Drama maduro dirigido por um grande diretor que não trilha pelos caminhos mais simplistas, mas que prefere tratar de forma inteligente os modos como as pessoas lidam com a morte e com as suas próprias crenças.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Da Crítica Aberta ao Abraço no Sistema Capitalista: A Trajetória Artística e Ideológica da banda Charlie Brown Jr. no Contexto da Indústria Cultural

A banda brasileira de rock Charlie Brown Jr. foi formada na cidade de Santos, litoral de São Paulo, no ano de 1992. A trajetória do Charlie Brown Jr. pode ser tomada como um instigante exemplo de como a indústria cultural absorve e transforma a orientação ideológica de determinados artistas.

No início da carreira o Charlie Brown Jr. contava com a presença de Chorão, no vocal; Champignon, no baixo; Renato Pelado, na bateria; Marcão, na guitarra; e Thiago Castanho, também na guitarra. A banda se destacou no cenário musical brasileiro ao apresentar uma sonoridade bastante própria, misturando hardcore, punk rock californiano, hip hop, reggae e rap. Com um ritmo envolvente e letras que faziam críticas a sociedade e apresentavam as perspectivas do jovem contemporâneo, o Charlie Brown Jr. logo chegou às paradas de sucesso.

O primeiro álbum da banda, Transpiração Contínua Prolongada, foi lançado, através da Virgin Records, em 1997, e, contou com a produção do lendário produtor musical Rick Bonadio. Mas foi com o segundo álbum, Preço Curto... Prazo Longo (1999), que a banda conquistou de vez boa parte do público jovem, principalmente devido ao fato de a canção Te Levar tornar-se a música de abertura do seriado Malhação, da TV Globo. Tal fato deu uma maior visibilidade à banda, uma vez que, a partir daquele momento, o Charlie Brown Jr. passou a ser conhecido, e, ouvido, pelas mais diversas camadas sociais.

Um exemplo do tipo de mensagem que o Charlie Brown Jr. transmitia, com suas músicas, pode ser verificado a partir de uns versos da canção Não é sério, música que esteve no terceiro álbum da banda, lançado em 2000 pela Virgin Records:

Eu sei como é difícil

Eu sei como é difícil acreditar

Mas essa porra um dia vai mudar

[...]

“O que eu consigo ver é só um terço do problema

É o Sistema que tem que mudar

Não se pode parar de lutar

Senão não muda

A Juventude tem que estar a fim

Tem que seu unir

O abuso do trabalho infantil, a ignorância

Só faz destruir a esperança

Na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério

Deixa ele viver... É o que liga”[1]

Através desses versos, podemos perceber que o Charlie Brown Jr. defendia a idéia da necessidade de se mudar o sistema capitalista, sistema vigente na sociedade brasileira. Nesse processo de transformação do sistema em um outro que fosse mais igualitário, a juventude deveria ter um papel central. Nesse sentido, a canção Não é sério convida os jovens a se unirem em uma luta coletiva por uma sociedade melhor, pois, somente assim, a juventude ganhará um maior respeito por parte da sociedade.

Já no álbum 100% Charlie Brown Jr. (2001), lançado pela grande gravadora EMI, o Charlie Brown Jr. apresentou uma excelente canção de protesto chamada Eu protesto, da qual extraímos os seguintes versos:

Foi você quem colocou eles lá

Mas eles não estão fazendo nada por vocês

Enquanto o povo vai vivendo de migalhas

Eles inventam outro imposto pra vocês

Aquela creche que deixaram de ajudar está por um fio

E a ganância está matando a geração 2000

E a sua tolerância está maior do que nunca agora...

Dormem sossegados os caras do Senado

Dormem sossegados os que fizeram esse estrago

Dormem sossegados os caras do Senado

Dormem sossegados os que pintaram esse quadro.[2]

Eu protesto, como se percebe, é uma canção que critica não só a classe política, mas também o próprio povo, que, afinal de contas, elegeu as pessoas que estão no poder. Criticando a tudo e a todos, a música denuncia a desigualdade social, a ganância dos poderosos, bem como a tolerância e passividade do povo brasileiro.

Já no álbum Bocas Ordinárias (2002), gravado pela EMI, o Charlie Brown Jr. trouxe a canção Papo Reto, na qual é descrito o comportamento e estilo da própria banda:

Você falou pra ela que eu sou louco e canto mal,

Que eu não presto, que eu sou um marginal,

Que eu não tenho educação,

Que eu só falo palavrão,

E pra socialite eu não tenho vocação...

Sei que isso tudo é verdade, mas

Eu quero que se foda essa porra de sociedade

Pago minhas contas, eu sou limpinho,

Não sou como você filho da puta, viadinho.[3]

Em 2002, o Charlie Brown Jr. já era uma banda de sucesso e tinha já um público bastante fiel. Mas mesmo com o sucesso e com o dinheiro, a banda continuava tendo uma cultura própria do seu lugar social de origem (a classe baixa), como observamos na letra de Papo Reto: falavam palavrões, não tinham educação, se identificavam com os marginais da sociedade, mas, a despeito de tudo isso, mostravam-se orgulhosos de pagar as próprias contas e não deverem nada a ninguém.

A banda continuou sua trajetória até que, no de 2005, Marcão, Renato Pelado e Champignon deixaram o Charlie Brown Jr., devido a divergências musicais com Chorão e com a gravadora. Thiago Castanho, que havia saído em 2000, voltou, na guitarra, sendo acompanhado de André Ruas, na bateria, e, Heitor Gomes, no baixo. No mesmo ano de 2005, a nova formação do Charlie Brown Jr. lançou o emblemático álbum Imunidade Musical, lançado pela EMI.

Imunidade Musical trouxe uma mudança radical no tipo de mensagem trazida pelo Charlie Brown Jr.. As letras passaram a ser mais politicamente corretas, os palavrões sumiram e as críticas ficaram extremamente leves. Um exemplo dessa mudança de tom é a canção Senhor do Tempo, da qual extraímos os seguintes versos:

Eu vi o tempo passar e pouca coisa mudar

Então tomei um caminho diferente

Tanta gente equivocada faz mal uso da palavra

Falam, falam o tempo todo, mas não tem nada a dizer

Mas eu tenho um santo forte e é incrível a minha sorte

Agradeço todo tempo ter encontrado você

O tempo é rei, a vida é uma lição

E um dia a gente cresce,

E conhece a nossa essência e

Ganha experiência

E aprende o que é raiz, então cria consciência.

Tem gente que reclama da vida o tempo todo

Mas a lei da vida é quem dita o fim do jogo

Eu vi de perto o que neguinho é capaz por dinheiro

Eu conheci o próprio lobo na pele de um cordeiro

Infelizmente a gente tem que tá ligado o tempo inteiro,

Ligado nos pilantras e também nos bagunceiros

[...]

Vivendo nesse mundo louco hoje só na brisa

Viver pra ser melhor, também é um jeito de levar a vida

[...]

Vem que o bom astral vai dominar o mundo

Eu já briguei com a vida

Hoje eu vivo bem com todo mundo aí

Na maior moral é Charlie Brown.[4]

Quão diferente é essa letra em relação às letras dos primeiros álbuns da banda! A mensagem trazida aqui é a de que o sistema capitalista não pode ser vencido, cabendo a cada um escolher o seu próprio caminho. O gesto de reclamar é visto como algo que não adianta mais nada, cada um deve lutar para chegar aonde se deseja, mas de lutar de uma forma madura e serena. Outro dado interessante é a desconfiança para com os “pilantras” e os “bagunceiros”, personagens sociais com os quais o Charlie Brown Jr. se identificava no início da carreira. Senhor do Tempo traz as marcas da perda dos ideais rebeldes da juventude. Trata-se de uma canção que traz claramente as mudanças no comportamento de Chorão, vocalista da banda, que, conforme foi envelhecendo, foi ficando cada vez mais politicamente correto ao longo da carreira.

Em 2009, o Charlie Brown Jr. saiu da EMI e assinou um contrato com a Sony Music, outra grande gravadora. No mesmo ano foi lançado, com a nova gravadora, o álbum Camisa 10 Joga Bola Até na Chuva, no qual a banda mergulhou de vez no politicamente correto. Desse álbum, no qual Bruno Graveto substituiu André Ruas na bateria, trazemos aqui uns versos de uma canção também chamada Camisa 10 Joga Bola Até na Chuva:

É assim que eu quero ser, sim, um cara melhor

Não melhor do que ninguém, mas o melhor que eu puder ser

O tempo passa e tudo muda e você tem que entender

Que existem vários caminhos, escolha um pra você

Você tem o dom da voz, você tem o poder

De prosperar, de evoluir e de fazer acontecer

De prosperar, de evoluir e de fazer acontecer

Entenda como se comportam os homens

Não se respeitam e não se tratam como irmãos

Pois quase tudo gira em torno de poder

E sufocado eu me liberto nessa canção

Então faça o que tiver que fazer

Busque a evolução e se liberte

Não fique aí perdido no espaço

Pois ficar só reclamando é muito fácil

Você nasceu para brilhar, o sol está em suas mãos

[...]

Camisa 10 joga bola até na chuva

[...]

Sólido na volta, por cima, eu vou com tudo

Pode anunciar e convidar todo mundo

Nessa vida eu quero amor, paz, sossego e liberdade

Charlie Brown Jr. invadindo a cidade.[5]

Como se observa, o discurso politicamente correto aqui está fortemente presente. A mensagem trazida pela música é a de que é preciso amadurecer na vida, parar de reclamar, e, começar a agir. Não se deixa de reconhecer que o mundo e a nossa sociedade possuem problemas, mas o que se defende é que é preciso se adaptar às regras da sociedade. Com um tom motivador, a música traz a idéia que não importa o quanto esteja chovendo, um verdadeiro camisa 10 sempre é capaz de jogar bem e vencer no jogo da vida. Devemos nos comportar como um camisa 10... Portanto, o que se busca agora não é mais uma mudança no sistema, mas sim a conquista de uma vida melhor (entenda-se a compra de bens de consumo) dentro do próprio sistema. Todavia, os caminhos a serem trilhados devem ser sempre caminhos individuais e não coletivos, tal como era pregado pelo Charlie Brown Jr. na música Não é sério, o que mostra a presença de um forte individualismo, elemento muito presente na nossa sociedade capitalista.

Em suma, temos que a trajetória artística e ideológica da banda Charlie Brown Jr. é representativa de como a indústria cultural se apropria de artistas engajados politicamente, moldando-os ao seu gosto. O Charlie Brown Jr. começou sua trajetória criticando a sociedade, denunciando os problemas sociais e incentivando a juventude a exercer o seu papel transformador na história, mas, com o decorrer dos últimos anos a banda abraçou o sistema, adotando uma postura politicamente correta, defendendo que todos possuem capacidade de vencer na vida, mas dentro do próprio sistema, é claro.

Essa mudança de comportamento é própria de uma banda que conseguiu o seu espaço na mídia, vendeu muitos discos, ganhou muito dinheiro, enfim, conseguiu vencer dentro do sistema. É por isso que o Charlie Brown Jr. tem abraçado o sistema, uma vez que a banda de Chorão conseguiu tudo o que tem graças ao próprio sistema.



[1] CHARLIE BROWN JR. Não é sério. In: ______. Nadando com os Tubarões. São Paulo: Virgin Records, 2000.

[2] CHARLIE BROWN JR. Eu protesto. In: ______. 100% Charlie Brown Jr. São Paulo: EMI, 2001.

[3] CHARLIE BROWN JR. Papo Reto. In: ______. Bocas Ordinárias. São Paulo: EMI, 2002.

[4] CHARLIE BROWN JR. Senhor do Tempo. In: ______. Imunidade Musical. São Paulo: EMI, 2005.

[5] CHARLIE BROWN JR. Camisa 10 Joga Bola Até na Chuva. In: _____. Camisa 10 Joga Bola Até na Chuva. São Paulo: Sony Music, 2009.